“Habitar” crónica de Luis Leal (in "Rayanos Magazine")
J. Paulete
Já alguma vez se sentiram amigo
de alguém antes de o conhecerem? Com as amizades à base de botão de Facebook, isso é mais do que frequente, no
entanto a esta pergunta apenas tenho encontrado casuais respostas no meu
quotidiano analógico de coisas simples.
Há uns anos atrás, encomendei um
livro no centro histórico de Badajoz. Até me lembro do título, mas isso não vem
ao caso. Poderia ter encomendado o livro pela net, porém estava numa daquelas
fases de resistir ao facilitismo em prol do contacto humano numa das livrarias
mais agradáveis e dinâmicas que conheço. Chegado o livro e contas feitas, o
dono da livraria deu-me a escolher uns quantos desenhos – aquarelas em
quadrados de papel reciclado dum programa duma tal Aula de Poesía Díez Canedo -. Trouxe o Albert Camus, quiçá uma homenagem
inconsciente por não ter sido capaz de terminar a sua Peste. O obséquio, mais do que a simpatia do proprietário da Tusitala, era a amabilidade dum
desconhecido a oferecer a sua arte, o seu tempo em esquissos, aos leitores que haviam
decido comprar um livro ao vivo. Assinava:
J. Paulete.
Durante bastante tempo, a
aguarela figurou na parede da nossa sala, ao lado dum azulejo do Pessoa com a
seguinte inscrição: pergunto a mim
próprio devagar, porque sequer atribuo beleza às coisas... Eis outra
pergunta a encontrar respostas precárias nesse meu quotidiano de coisas nada
rebuscadas.
Foi a confiança do Antonio Sáez
que me apresentou aos directores dessa tal Aula
de Poesía Díez Canedo de Badajoz. O meu caríssimo (e crítico literário)
Enrique García-Fuentes e, imaginem só, esse desconhecido J. Paulete, cujo
retrato do existencialista francês por lá existia, pendurado na minha casa.
Para quem não sabe, como eu não
sabia, a Aula de Poesía Díez Canedo,
iniciada por o incontornável sanvicenteño
Ángel Campos Pámpano, é uma autêntica referência cultural transfronteiriça. Uma
aula unicamente dedicada ao género
poético, que, ao longo dos anos, já acolheu mais de 150 grandes nomes da poesia
ibérica. Esta iniciativa conta com o apoio da Asociación de Escritores de Extremadura, com várias Aulas de Literatura análogas em outras
localidades da comunidade autónoma, e da Diputación
de Badajoz. Quanto a mim, e já mais de uma vez o expressei, esta aula de poesia pacense seria uma justa
merecedora do Prémio Eduardo Lourenço,
instituído pelo Centro de Estudos
Ibéricos, contudo não faço a mínima ideia se uma candidatura deste tipo
seria viável.
Ao colaborar com a Aula Díez Canedo, tive a sorte de
conhecer melhor essa figura generosa que é o José Manuel Paulete. Poeta do
pincel, magnifico leitor, desenha no papel reciclado o que a literatura traz e
faz pelo ser humano. A liberdade de pensar. O fruir. O quotidiano. A Exploração de Rotas Comuns que, como
tive o prazer de ver na sua mais recente exposição no Bahnhof Espacio Cultural, levam a essas coisas simples, às quais
uns quantos atribuímos beleza. As rotas comuns do quotidiano deste artista
ainda são mais poéticas porque as faz montado na sua bicicleta, pois é um ciclista
urbano com peso de massa crítica. Por
onde passa, melhora o ambiente da cidade onde vivemos.
O Paulete é um exemplo no plural
de grandes artistas cujo talento e generosidade transpõe naturalmente qualquer
fronteira. Confesso que, fruto das minhas circunstâncias e maneira de ser, não
sou uma pessoa ávida duma excepcional vida social e cultural, no entanto sou
sensível a vários exemplos de iniciativas de altíssimo nível cujo embrião
encontramos em regiões desfavorecidas como a Extremadura espanhola ou o vizinho
Alentejo.
O apreço levou-me a escrever esta
crónica, é mais do que evidente, tal como é evidente o desejo de mostrar ao meu
estimado leitor que, mesmo longe dos centros de poder, encontramos
manifestações artísticas tão sublimes quanto o compromisso de agentes culturais de vocação e, muitas
vezes, não de profissão. Talvez no seio da escassez, as quimeras encontrem
maior ressonância no coração da gente. Talvez, como numa casa pouco mobilada, o
eco seja mais importante porque o vazio não lhe permite distrações.
Quando admiro o trabalho feito
pelas Aulas de Literatura da AEEX,
especialmente o trabalho elaborado pela Aula
de Poesía Díez Canedo, sonho poder emular algo assim na cidade que me viu
nascer, a minha Ítaca, da qual não
sou rei, mas sim súbdito. A minha Évora. Já esteve mais longe... o Quique e o
Paulete lá estarão para nos apadrinhar, porque, de outra maneira, não poderia
ser.
(Nota: Esta crónica não respeita o actual acordo ortográfico. Respeita
o passado da língua portuguesa, a sua história, a uni-la às outras línguas
românicas.)
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