domingo, março 25, 2018

"J. Paulete" por Luis Leal (in "Rayanos Magazine")




“Habitar” crónica de Luis Leal (in "Rayanos Magazine")

J. Paulete

Já alguma vez se sentiram amigo de alguém antes de o conhecerem? Com as amizades à base de botão de Facebook, isso é mais do que frequente, no entanto a esta pergunta apenas tenho encontrado casuais respostas no meu quotidiano analógico de coisas simples.

Há uns anos atrás, encomendei um livro no centro histórico de Badajoz. Até me lembro do título, mas isso não vem ao caso. Poderia ter encomendado o livro pela net, porém estava numa daquelas fases de resistir ao facilitismo em prol do contacto humano numa das livrarias mais agradáveis e dinâmicas que conheço. Chegado o livro e contas feitas, o dono da livraria deu-me a escolher uns quantos desenhos – aquarelas em quadrados de papel reciclado dum programa duma tal Aula de Poesía Díez Canedo -. Trouxe o Albert Camus, quiçá uma homenagem inconsciente por não ter sido capaz de terminar a sua Peste. O obséquio, mais do que a simpatia do proprietário da Tusitala, era a amabilidade dum desconhecido a oferecer a sua arte, o seu tempo em esquissos, aos leitores que haviam decido comprar um livro ao vivo. Assinava: J. Paulete.
"Albert Camus" por J.M. Paulete

Durante bastante tempo, a aguarela figurou na parede da nossa sala, ao lado dum azulejo do Pessoa com a seguinte inscrição: pergunto a mim próprio devagar, porque sequer atribuo beleza às coisas... Eis outra pergunta a encontrar respostas precárias nesse meu quotidiano de coisas nada rebuscadas.

Foi a confiança do Antonio Sáez que me apresentou aos directores dessa tal Aula de Poesía Díez Canedo de Badajoz. O meu caríssimo (e crítico literário) Enrique García-Fuentes e, imaginem só, esse desconhecido J. Paulete, cujo retrato do existencialista francês por lá existia, pendurado na minha casa.

Para quem não sabe, como eu não sabia, a Aula de Poesía Díez Canedo, iniciada por o incontornável sanvicenteño Ángel Campos Pámpano, é uma autêntica referência cultural transfronteiriça. Uma aula unicamente dedicada ao género poético, que, ao longo dos anos, já acolheu mais de 150 grandes nomes da poesia ibérica. Esta iniciativa conta com o apoio da Asociación de Escritores de Extremadura, com várias Aulas de Literatura análogas em outras localidades da comunidade autónoma, e da Diputación de Badajoz. Quanto a mim, e já mais de uma vez o expressei, esta aula de poesia pacense seria uma justa merecedora do Prémio Eduardo Lourenço, instituído pelo Centro de Estudos Ibéricos, contudo não faço a mínima ideia se uma candidatura deste tipo seria viável.

Ao colaborar com a Aula Díez Canedo, tive a sorte de conhecer melhor essa figura generosa que é o José Manuel Paulete. Poeta do pincel, magnifico leitor, desenha no papel reciclado o que a literatura traz e faz pelo ser humano. A liberdade de pensar. O fruir. O quotidiano. A Exploração de Rotas Comuns que, como tive o prazer de ver na sua mais recente exposição no Bahnhof Espacio Cultural, levam a essas coisas simples, às quais uns quantos atribuímos beleza. As rotas comuns do quotidiano deste artista ainda são mais poéticas porque as faz montado na sua bicicleta, pois é um ciclista urbano com peso de massa crítica. Por onde passa, melhora o ambiente da cidade onde vivemos.

O Paulete é um exemplo no plural de grandes artistas cujo talento e generosidade transpõe naturalmente qualquer fronteira. Confesso que, fruto das minhas circunstâncias e maneira de ser, não sou uma pessoa ávida duma excepcional vida social e cultural, no entanto sou sensível a vários exemplos de iniciativas de altíssimo nível cujo embrião encontramos em regiões desfavorecidas como a Extremadura espanhola ou o vizinho Alentejo.

O apreço levou-me a escrever esta crónica, é mais do que evidente, tal como é evidente o desejo de mostrar ao meu estimado leitor que, mesmo longe dos centros de poder, encontramos manifestações artísticas tão sublimes quanto o compromisso de agentes culturais de vocação e, muitas vezes, não de profissão. Talvez no seio da escassez, as quimeras encontrem maior ressonância no coração da gente. Talvez, como numa casa pouco mobilada, o eco seja mais importante porque o vazio não lhe permite distrações.

Quando admiro o trabalho feito pelas Aulas de Literatura da AEEX, especialmente o trabalho elaborado pela Aula de Poesía Díez Canedo, sonho poder emular algo assim na cidade que me viu nascer, a minha Ítaca, da qual não sou rei, mas sim súbdito. A minha Évora. Já esteve mais longe... o Quique e o Paulete lá estarão para nos apadrinhar, porque, de outra maneira, não poderia ser.

(Nota: Esta crónica não respeita o actual acordo ortográfico. Respeita o passado da língua portuguesa, a sua história, a uni-la às outras línguas românicas.)


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