quarta-feira, dezembro 30, 2020

terça-feira, dezembro 29, 2020

Crónica: "Nota que não chegou a diário..." de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº154, p. 68)

      Nota que não chegou a diário...

    Li, algures, que “os diários são como os dedos, todos iguais, mas cada um tem a sua impressão digital”. É provável que a citação não seja exatamente assim, porém não anda longe e não me apetece ir confirmar
    Quando estive confinado, ao contrário de muitos, não me senti capaz de escrever. Quanto muito uma intenção de um verso, que não passará disso, ou umas notas soltas que não chegam a diário. Apontamentos de como vou observando a sociedade peninsular, nesta minha vida ibérica, que me tem permitido ver coisas que jamais imaginaria. 
    Boas principalmente. Gente, locais, o melhor do ser humano. A nossa capacidade evolutiva, dinâmica, pois as nossas personalidades não são estáticas, avançando dentro de alguma coerência para bem da nossa essência. 
    Mentir-vos-ia se dissesse que não vejo o contrário. Se omitisse a crispação ideológica crescente, os nacionalismos mais do que emergentes e se não vivesse a 200 metros duma vala comum da Guerra Civil. Por isso, assusta-me ouvir vociferar “facha”, “rojo” ou esse “equidistante” atirado a matar qualquer tolerância a pensar por si própria.
    Ia tentando alhear-me do facto de só poder esticar as pernas no supermercado, mesmo tendo em frente de casa um descampado de contacto físico e ter os olhos a arder de tanto ecrã. E ao sentir o vírus a contagiar-me pelas redes sociais, desinfectei-me do computador e do telemóvel, usados apenas para trabalhar e pouco mais. Optei pela distância de segurança digital, pelos outros e por mim.
    Casualmente, andava com umas leituras pendentes. Anos 20. Chaplin, Gómez de la Serna e António Ferro, tão fascinado por um sinistro lente de Coimbra como por Hollywood, essa capital de imagens que tão bem tem travestido individualismo por valores de superação pessoal, empreendedorismo, ajudando a amputar a solidariedade à escala global, mas deixando a esperança de uns quaisquer “Vingadores” nos salvarem. 
    Lembrava-me disso enquanto o meu mundo parava a aplaudir a precariedade dos profissionais de saúde face ao Covid-19, da varanda, que não tenho, ouvia o silêncio do aplauso para a senhora da limpeza, para o camionista, para a caixa e repositor do supermercado, para o agricultor, para o senhor idoso do quiosque (que me ia salvando das notícias falsas), para o jornalista de empresas de trabalho temporário, para todos os invisíveis que mantiveram heroicamente o essencial de sociedade, enquanto teletrabalhava e lia que Chaplin filmou “O Grande Ditador” a advertir-nos, rindo, dos perigos de Hitler, que Ramón se autoexilou “equidistante” e o ex-modernista Ferro se tornou o homem do leme da propaganda de um Estado Novo que morreu de velho, por mais que um gajo acredite em Abril.
    Mesmo confinado, o tempo passa e tornei-me quarentão em quarentena. A minha mulher deu-me outro livro, via Amazon, de Luis Sepúlveda, entretanto vítima do vírus. Li-o com a lealdade canina do protagonista, mas, apesar dos “enta”, disto do “Velho que Lia Romances de Amor”.
    É verdade, tenho visto mais do que imaginava. Não é arrogância de crer ter mais mundo do que outros. O meu é pequeno, mas dedico-lhe atenção. Geralmente, como os Monty Phyton, “always look at the bright side of life”, o que não me impede de pisar merda de vez em quando. Perdão pelo vernáculo, nada demais para a minha geração, que mandou a Troika fazer outras coisas, em alto e bom som, para depois começar a trabalhar com menos direitos do que os seus pais e sem casa para alugar, mas com milhares de séries disponíveis para ver em quatro ou cinco vidas.
    Lá fora, a vida é só uma e a natureza, a mais realista das séries, continuou sem grandes audiências de humanidade, provando que tem memória e, da janela, vislumbrei estações esquecidas sem poder apear-me devido ao correr da pandemia. 
    Pouco ou nada escrevi durante esses dias, li. Hoje recordo a lucidez desconfinada de Cioran, nos alforges da minha bicicleta, a dizer-me: “quem parar o mundo, mesmo por erro ou negligência, será o seu salvador”. Talvez tenha razão Emil, talvez...



Crónica: "Nota que não chegou a diário..." de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº154, p. 68)

    2020 foi prolífico em publicações, principalmente diários e crónicas nas redes sociais, no entanto, o meu confinamento não foi propício para o exercício da escrita. Recatei-me na leitura, no estudo, só rabiscando notas soltas, rotineiras, vácuas como o silêncio a fazer-me falta. E, pela primeira vez, senti que envelheci. Talvez porque me tornei “quarentão em quarentena”, num país onde só podia esticar as pernas no supermercado... Já desconfinado, a última “Mais Alentejo” albergou uma “Nota que não chegou a diário” e que resume este meu ano, finalmente, a acabar. 

    Este ano deixou mossa em muitos sectores da nossa sociedade, a imprensa escrita é um deles, portanto, se puder, em 2021, continue a apoiar, nas bancas, projetos jornalísticos como o da equipa da “Mais Alentejo”. Eu vou tentar. Votos de um bom ano novo!

    2020 fue prolífico en publicaciones, principalmente diarios y crónicas en las redes sociales, sin embargo, mi confinamiento no fue propicio al ejercicio de la escritura. Me recaté en la lectura, en el estudio, solo garabateando notas sueltas, rutinarias, vacuas como el silencio que me hacía falta. Y, por la primera vez, sentí que envejecí. Tal vez porque me hice “cuarentón en cuarentena”, en un país donde únicamente podía estirar las piernas en el supermercado... Ya desconfinado, la última “Mais Alentejo” albergó una “Nota que no llegó a diario” y que resume este año mío, finalmente, terminando. 

    Este año dejó marcas en muchos sectores de nuestra sociedad, la prensa escrita es uno de ellos, por lo tanto, si es posible, en 2021, siga apoyando, en los kioscos, proyectos periodísticos como el del equipo de la “Mais Alentejo”. Yo lo voy a intentar. ¡Feliz año nuevo!




quarta-feira, dezembro 23, 2020

Confúcio chorou...

Confúcio chorou no dia em que viu que o seu primeiro discípulo morrer pelas suas próprias ideias. Chorou muitas mais vezes e morreu velho e sábio. A sua sabedoria é hoje recordada com simplicidade, com civismo. Confúcio chorou, errou pela China, mas a sua condição humana foi aprendida de Oriente a Ocidente.

terça-feira, dezembro 22, 2020

Crónica: "Rafeiro como Eu" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº153, p. 48)

        O que é que o Nero, o Pantufa, o Júnior, o Jacó e o Rocky têm em comum para além de terem sido os cães da minha família? A resposta é fácil: eram rafeiros. Isto é, segundo o dicionário, cães sem “raça definida, resultado do cruzamento de diversas raças” ou, se enveredarmos pelo uso coloquial e pejorativo, algo “que não presta, de má qualidade, com mau aspecto” ou, simplesmente, “vadio”.

A canzoada só não tinha raça definida, pois, cada um à sua maneira, especialmente o Júnior (o incondicional amigo que o Ti Luís, o pai da nossa Sara Rodi, me deu), eram animais dignos, nobres, belos e cheios de humor. Como o Jacó, um Joe Pesci coelheiro de orelhas pontiagudas, mafioso de quatro patas que, depois de um périplo de meses, retornou a casa só para nos esfregar no focinho que jamais lhe domaríamos a Camorra que levava no sangue.

Tive a sorte, desde puto, da amizade canina, porém, a vida afastou, quase duas décadas, a sua presença na minha casa. Senti a saudade do passeio pelo campo, da cabeça nas pernas a pedir festas, da alegria do rabo a abanar ao ver-me, dos sprints atrás da bola ou das divagações do faro à procura de gatos, lebres ou comida no lixo. Na memória, ficou o cheiro a cão, a baba nas calças e esse domingo de convívio do grupo de casais ao qual os meus pais pertenciam na nossa paróquia.

Passei a maior parte do tempo a brincar com um cachorrinho gordo, peludo, uma espécie peluche vivo, sempre atrás dos meus Nike de ir à missa. Lembro-me de perguntar ao dono, um jovem latifundiário, qual era a raça do bichano.

- É um rafeiro alentejano. Queres ver os pais dele?

Já sabia o que era um rafeiro, mas aquele cachorro era como eu, alentejano e sem quaisquer virtudes de berço, além da teimosia atrás dos atacadores e da franqueza da paisagem. O canil era enorme, apesar da corpulência daqueles dois animais, sóbrios e de expressão calma. O macho, maior do que a fêmea, pareceu-me mais cabeçudo. Vieram de imediato ter com o dono que lhes afagou o pêlo grosso e me pôs à vontade para os acariciar, eles não me fariam mal. Um rafeiro alentejano é dócil e cúmplice da criançada. Excelente cão de guarda, seguro e confiante, vigilante nas horas de escuridão, não hesita em usar corajosamente as suas presas robustas para defender os seus de qualquer tipo de intruso.  

- Andam soltos à noite pelo monte, à mínima dão logo sinal. Ele tem quatro anos e ela é pouco mais velha. O canito com que andas na brincadeira está à mama sozinho, é um belo bicho! Um amigo meu vem buscá-lo para a semana...

Creio que foi o meu olhar fascinado, ou talvez o lavrador tenha intuído a heráldica do meu apelido, mas as suas palavras tornaram-se um sonho que recordo com sorriso gaiato.

- Se quiseres, para a próxima ninhada, guardo-te um.

O meu pai, ali por perto, assentiu. 

Durante meses perguntei se havia notícias do simpático senhor do monte. Soube, anos depois, que lamentavelmente nos deixou antes de tempo.  E o meu rafeiro alentejano foi crescendo longe de mim. Acredito que os seus antepassados molossos o impelissem a buscar outros rebanhos por esta Península Ibérica fora. Eu fiz o mesmo.

Quem nasce rafeiro, e alentejano, não escapa ao seu carácter, à planura do seu espírito. E, há um ano, quando a minha alma se amedrontava perante um lobo negro, tão cobarde quanto a sua alcateia dissimulada, regressou ao meu território o rafeiro que me foi oferecido, retomando o seu lugar na família. 

O Donnie, o nosso rafeiro alentejano, esse cachorro abandonado aos sete meses, de pelagem lobeira, com o seu peito largo e profundo, pôs-se ao meu lado, recuperando a força da minha vasta planície, profunda em silêncio e teimosa como o sol a romper por entre farrapos de nuvens. 

Vive livre pela raia e escolheu ser leal aos meus. Territorial, zela pela tranquilidade do nosso monte. Este cão, que o bom terratenente me guardou, foi duma ninhada tardia. Tem o pedigree que verdadeiramente me importa. O da terra imensa, da tranquilidade, do pão. A herança de gente simples, tisnada de sol e de agruras, cuja genética amastinada me corre pelas veias e me protege o perímetro vital se algum lobo se aproxima.



Crónica: "Rafeiro como Eu" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº153, p. 48)

Já não está nas bancas, e até a podemos encontrar na "Mundo Rural TV" em espanhol, mas aproveito estes dias para partilhar a crónica "Rafeiro como Eu", publicada na "Mais Alentejo" nº153, em que falo um pouco sobre os cães da minha vida, sobre esta minha predileção pelo Rafeiro Alentejano e, para variar, me ponho a divagar. Se vos apetecer ler, aqui está (recomendo a versão do blog), no entanto, vamos ao mais importante: Boas Festas!

Ya no está en los quioscos, e incluso podemos encontrar en "Mundo Rural TV" su versión española, pero aprovecho estos días para compartir la crónica "Rafeiro como Eu", publicada en la “Mais Alentejo” nº153, en la que hablo un poco sobre los perros de mi vida, sobre esta predilección mía por el “Rafeiro Alentejano” (mastín del Alentejo) y, para variar un poco, me pongo a divagar. Se os apetece leer, aquí la tenéis (recomiendo la versión del blog), sin embargo, vamos a lo más importante: ¡Felices Fiestas!


Azul ar (Alexandre O'Neill)

Fotografía de Rosa Pomar


AZUL AR

azul mais azul que todo o azul do mar
azul mais azul que todo o azul do mundo
que azul tão azul tinha
ali o azul do céu
para onde azulou o passarinho meu

Alexandre O´Neill


segunda-feira, dezembro 21, 2020

Ninjas na Guiné-Bissau

 

 

Ninjas é o título desta fotografia que João Francisco  Moura tirou na Guiné-Bissau.



sexta-feira, dezembro 18, 2020

"Será possível viver sem antecipar o dia seguinte?"

"Será possível viver sem antecipar o dia seguinte?" oiço, sem ser questionado, e tento responder para mim mesmo. A resposta chegou cansada e sem antecipar nada, excepto a fragilidade destes dias.

 

quinta-feira, dezembro 17, 2020

Um estranho lume no corpo (António Gonçalves + David Barbosa)

Fotografia de Tasha F


O meu amigo António Gonçalves enamorou-se de uma jovem que o atende na caixa de um minimercado. Seja qual for o dia da semana, mesmo domingos, lá está ela, sempre atrás da máquina registadora, sempre com o mesmo cumprimento, sempre com as perguntas obrigatórias sobre cartões, sacos e promoções, como se fosse um prolongamento artificial daquela estrutura metálica e de cimento, ou tivesse sido metamorfoseada por uma bruxa má numa máquina falante. O enamoramento do meu amigo é todo interior, apenas dele, platónico, sem qualquer veleidade ou pretensão. Trata-se antes de uma espécie de simpatia ideológica, de um sentimento de solidariedade. De compaixão. O que o leva por vezes a opiniões radicais e muito pouco em moda, como defender que em muitas situações a mulher faria melhor em optar por ser dona de casa, da sua casa, do que sujeitar-se a aturar patrões, empregos alienantes e mal pagos. Sobretudo agora com tantos eletrodomésticos a permitir tempo livre para ocupações mais criativas. Mas ele também acrescenta que o que diz se pode e deve aplicar aos homens, ainda que estes estejam mais habituados a ser burros de carga.

E, ao correr da pena, escreveu este poema num guardanapo:

Dezoito anos. Quase loiros os cabelos.
O verde nos olhos. E um estranho lume
no corpo quando dança.
Saiu agora da longa casa da infância,
e trabalha das nove às seis
algures num subúrbio.
Não gosto de pensar que em breve
não mais terá dezoito anos,
nem quase loiros os cabelos.
Talvez o verde nos olhos, mas já não
um estranho lume no corpo quando dança.



(Fonte: A vida secreta das palavras - O Blog da biblioteca da escola secundária de Tondela)


Ramón - Como dava beijos lentos, duravam-lhe mais os amores

 

 

Uma ilustração da portuguesa © Susana Carvalhinhos (1981) para esta greguería do espanhol Ramón Gómez de la Serna (1888 - 1963)

Para saber mais de Susana Carvalhinhos.


terça-feira, dezembro 15, 2020

"Pre-Textos para Pensar" - José Manuel Méndez Sierra (2020)

    El imperador romano Marco Aurelio nos dejó en sus “Meditaciones” el siguiente consejo: “No te dejes arrastrar por el torbellino de las pasiones; antes bien, a todo el ímpetu del instinto, ofrece lo que de justicia le toca; ante toda la aprensión de la fantasía, conserva la facultad de pensar”. 
    Actualmente, la facultad de pensar se asume como algo menos importante de conservar. Reflexionar no es una prioridad ante las pasiones y el ímpetu del espíritu de este presente. Quizás sea un signo de los tiempos, no lo niego, sin embargo, si nos preocupamos en buscar en el caos del exceso de información, todavía se encuentran “pre-textos para pensar”, como hace mi amigo José Manuel Méndez, ese mismo que hace poco mencioné por estos pagos en una publicación sobre el verbo “resistir”. 
    Personalmente, quiero creer que, si el pensamiento de uno se erigió en libertad y se ramificó en respeto y dignidad desde tierna edad, es muy difícil que este territorio neuronal sea invadido y colonizado por otras potencias, a pesar de que muchas veces la diplomacia intelectual permita presencias puntuales debidamente controladas. Es decir, soy de los que quieren “pensar” que, en circunstancias supuestamente normales, quien manda en lo que va debajo de nuestro pelo somos nosotros. Y es lo que me parece que José Manuel Méndez nos recuerda en las 36 entradas de su última publicación, donde este auténtico humanista (en la acepción clásica de la palabra) nos invita a la reflexión con una honestidad intelectual que, según mi perspectiva, no abunda en la contemporaneidad y que se basa en un esfuerzo constante por mantener su espíritu libre a través de dos presupuestos fundamentales a la hora de formar cualquier opinión: coherencia y humor.
    La verdad es que yo soy un lector privilegiado, pues detecto su humor (y una gran humildad, lo digo de paso) en cada paréntesis que José Manuel abre en su libro, pero estoy seguro que este recopilatorio de textos, algunos con más de 15 años (y completamente intemporales como las meditaciones de Marco Aurelio), redactados fundamentalmente para jóvenes entre los 16 y 18 años, son una invitación a la más viable de todas las subversiones, la del pensamiento. 
    Si tenéis la oportunidad de leer este pequeño volumen, aparentemente de monólogos, acogedlo con ganas de dialogar con sus páginas. Yo lo hice y me di cuenta de que debería de coger más ratos de mis 24 horas en piloto-automático simplemente con el “pre-texto” de pensar.



 
 

Uma fotografia de Robert Doisneau

 

Robert Doisneau’s photograph of a father helping his daughter learn to ride a bike, 1961.



quarta-feira, dezembro 09, 2020

100 anos do nascimento de Clarice Lispector



Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector (em russo: Хая Пинхасовна Лиспектор; Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977).


A QUINTA HISTÓRIA

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “As Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia formar parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atra vesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exacta mente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os mo numentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde essa mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal como quem já não dorme sem a avidez de um rito? E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão no vício de ir ao encontro das estátuas que a minha noite suada erguia? Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticiera. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou a minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.

Clarice Lispector



terça-feira, dezembro 08, 2020

Um cabide na cabeça...

Não acredito em superioridades geracionais, como a que se discutia o outro dia no meu trabalho. Quem defendia que a sua geração é mais inteligente que a actual talvez estivesse a ocultar alguma insegurança ou, até mesmo, algum sentimento de inferioridade, havia que entrar na psicoanálise. Eu estava a ouvir, cada vez falo menos nestes âmbitos e, se intervim, foi por alguma coisa insignificante ou para tentar dizer alguma piada.
Porém, confesso que o riso hoje não ecoou para além da minha estupefacção, ficou pela boca aberta e quis desaparecer, não por vergonha alheia, mas sim por sentir que não anda por aqui a fazer nada, que talvez já seja inútil tentar separar o trigo do joio, tentar discernir qualidade por entre tanta mediocridade (até já pareço a minha colega da superioridade geracional!). A verdade é que possivelmente não tenho competências dignas desta era e nem sei o que é que ando para aqui a fazer...
E não é que a tendência do momento, o "trending topic" viral das redes no apogeu Covid-19, é um meu semelhante gravar-se com um cabide (sim, esse objecto para pendurar roupa que temos no armário!) na cabeça! Isto é, uma cruzeta na mona e subir o video às redes movimentando a tola para a esquerda e para a direita, talvez para cima e para baixo...
Agora que acabo de escrever esta nota de diário, já sinto um sorriso a querer esboçar nos cantos arredondados de incredulidade da minha boca e penso que enfrentar os desafios do futuro com um cabide na cabeça até é capaz de caber na cabeça de alguém como eu. Portanto, o melhor sitio para me arrecadar é mesmo no armário, na boa companhia das traças e da naftalina.

Uma paragem na brincadeira para dois dedos de conversa com os vizinhos do lado... (6/XII/2020)

3 de maio (Oswald de Andrade)





3 DE MAIO

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Oswald de Andrade




(Retrato de Oswald de Andrade, 1922, obra de Tarsila do Amaral)


domingo, dezembro 06, 2020

Camões em crioulo cabo-verdiano

 
Fotografia de Rita Bárbara

 
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luis de Camões


Ta muda tenpu, ta muda vontadi,
Ta muda ser, ta muda konfiansa;
Tudu mundu é fetu di mudansa,
Ta toma senpri nobus kolidadi.

Sen nunka pára nu ta odja nobidadi,
Diferenti na tudu di speransa;
Máguas di mal ta fika na lenbransa,
Y di ben, si izisti algun, ta fika sodadi.

Tenpu ta kubri txon di berdi manta,
Ki di nebi friu dja steve kubertu,
Y, na mi, ta bira txoru u-ki n kantaba

Ku dosura. Y, trandu es muda sen konta,
Otu mudansa ta kontise ku más spantu,
Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba.

(Tradução para crioulo cabo-verdiano de José Luís Tavares)


A árvore é um todo que entende a harmonia necessária a todas as partes...

A árvore bem enraizada não se destaca no horizonte, nem assume protagonismo na paisagem. É apenas um todo que entende a harmonia necessária a todas as partes.

quarta-feira, dezembro 02, 2020

"Plandemia"

De camino a casa, viene siempre bien una teoría de la conspiración: "Plandemia". Salgo de la rutina y por momentos mi vida tiene algo de novelesco...


El mundo de la radio infantil... (en la era Covid-19)




 

1 de Dezembro de 2020

Hoje falei com os meus alunos mais velhos sobre 1580, sobre a crise de sucessão e sobre a prudência de Filipe II de Espanha, que acabou por unir as duas coroas (e assim chegar aos quatro cantos do mundo), com alguma aceitação por parte das classes dominantes portuguesas, devido a ser um monarca que sabia honrar os seus compromissos. Isto é, a sua inteligência e a sua visão estratégica não se resumiam aos curtos horizontes de Castela. Filipe II elevou Hespanha a império e fê-lo deixando os portugueses serem uma nação, uma cultura e, o mais determinante de tudo, serem e deterem a sua economia. Portanto, essas coisas de independência e arraigo à bandeira nacional depende mais de moedas do que de amores pátrios.
O legado de Filipe II ficou por essa lição de história aclamada por Portugal num reinado e renegada pouco depois por uma descendência do monarca incapaz de manter qualquer unidade peninsular, quanto mais de um império com a extensão das Descobertas portuguesas e espanholas do século XVI, e o terceiro da Dinastia Filipina, porém quarto de Espanha, viu como num primeiro de Dezembro de 1640 Portugal se sublevava de uma Espanha em guerra com meio mundo, a esbanjar os recursos do Brasil e da Índia e, ainda por cima, a sobrecarregar o Zé Povinho, melhor o Manuelinho, esse louco da minha terra, com impostos. 
Por momentos, os meus alunos, alheios à fronteira mais antiga da Europa, sem qualquer tipo de preconceito nacionalista, nem a lembrarem-se de polémicas catalãs, bascas ou de anedotas galegas, anteviram um hipotético legado de união peninsular e aprenderam porque se utiliza substrato para além das plantas. Não lhes falei de Oliveira Martins, nem aprofundámos mais a questão, mas naquela sala de aula entendeu-se algo da história da civilização ibérica e o génio peninsular que nos une e é apanágio de portugueses, castelhanos, bascos, galegos e catalães...
Sumário: saí da aula, satisfeito por aqueles jovens honrarem a nossa "intrahistoria" com o seu interesse em saberem o porquê da efeméride do primeiro de Dezembro, e recebo a notícia do falecimento de Eduardo Lourenço. Pensei na sua longevidade, 97 anos de sabedoria, no seu génio peninsular com berço na Guarda e senti que, de alguma maneira, após tanto a renegar, já me vou adentrando no meu próprio labirinto da saudade.  

terça-feira, dezembro 01, 2020

El invierno del dibujante (Paco Roca)


El invierno del dibujante es una novela gráfica de Paco Roca, publicada originalmente en 2010 por Astiberri Ediciones. (Wikipedia)

Paco Roca investiga en El invierno del dibujante la salida de los autores estrella de la editorial Bruguera para fundar, en tiempos oscuros, una revista que les hiciera más libres.

La vida en Bruguera con la dictadura de Franco como telón de fondo y la salida de sus dibujantes estrella para fundar
Tío Vivo, una nueva revista que les permitiera conseguir mayores recursos, mantener el control creativo de sus personajes, etc. –lograr una mayor libertad, en definitiva–, como metáfora del régimen franquista, es el marco y la esencia de El invierno del dibujante, la nueva obra de Paco Roca, Premio Nacional del Cómic 2008 con Arrugas.

Y es que en la España de 1957 ser historietista era un oficio. No eran artistas, eran obreros de la viñeta. Cobraban a tanto por página (o por viñeta), trabajaban a destajo, siguiendo unos patrones establecidos e inamovibles. Renunciaban a sus originales y a sus derechos de autor a cambio del dinero cobrado. Pero en ese 1957 ocurrió algo que quebró la monotonía y sembró la esperanza. Cinco extraordinarios historietistas, famosos por sus personajes, osaron rebelarse.

(Continúa en Astiberri


Premio al mejor guión de autor español de 2011 en el Salón Internacional del Cómic de Barcelona

Premio a la mejor obra de autor español de 2011 en el Salón Internacional del Cómic de Barcelona

Premio al mejor autor extranjero en el Treviso Comic Book Festival 2011 (Italia)

Premio al mejor guión nacional en Expocómic 2011, el Salón Internacional de Cómic de Madrid