Mais ainda que o sotaque (muitas vezes confundido com galego ou argentino), uma das coisas que vai delatando as minhas origens é tomar café num ritual que, em abono da verdade, conquistei já bem adulto. Uso este verbo pois acredito que os verdadeiros deleites têm de ser conquistados, necessitam uma formação prévia que, em períodos de imaturidade, é apenas desperdício. Poderia fazer uma lista de rotinas que necessitam ter o nosso espírito mais polido para poderem ascender a sublimes. Lembro-me da música clássica, do jazz, do vinho, da ensaística, do sexo, do whisky, da poesia, entre tantas, antes de me centrar nessa bebida produzida a partir dos grãos torrados do fruto do cafeeiro.
Aos 27 anos, conquistei o carácter do café. Como T.S. Eliot também tenho medido a minha vida em colherzinhas de café, essas que, em círculos, agita possíveis borras no fundo antes de descansar no pires, depois de batida na margem da xícara, num ritual sem nada que invejar à cerimónia do chá japonês, pois, entre a amargura e o dulçor, o café igualmente nos permite contemplar a natureza da existência.
Quando os meus amigos já o bebiam, ainda na adolescência, para favorecerem a digestão, alegrar o espírito, afastarem o sono e terem estilo (e alguns para libertarem o ventre na companhia de um cigarro), só o aroma é que me despertava os demais sentidos. As bicas, tiradas nos verões em que trabalhava para o meu tio num bar de uma piscina algarvia cheia de inglesas em biquíni, a cafeteira na lareira, muitas vezes só com cevada ou chicória a substituírem o verdadeiro café na falta de outras possibilidades, eram aromas agradáveis, porém, quando me chegavam ao paladar não eram capazes de invadir esse território pueril habituado ao “ColaCao”.
Possivelmente só se pode valorizar a miudeza quando aprendemos a saborear o travo de termos de crescer. A doçura em excesso provoca diabetes e tende a ocultar epifanias como as que, no meu prosaísmo, costumo ter enquanto tomo, em leves sorvos, uma bica. Um olhar a perder-se pela janela, uma conversa a solucionar os dilemas do mundo, o voyeurismo do cimbalino alheio, o silêncio estimulante, o pacotinho de açúcar que levas para casa e te cita o Tolentino Mendoça: “Este instante que passa é a porta por onde entra a alegria”.
Durante o confinamento em Portugal, li algures que tomar café, isto é, praticar a religião com mais fiéis entre o povo português, se havia tornado uma atividade ilícita, sendo proibido fazê-lo em diversos estabelecimentos, à imagem dos cristãos nas catacumbas, e para se poder celebrar este rito havia que se recorrer a um código tipo “quero um bitoque”. Eu, apesar das restrições, em Espanha, fui podendo praticá-la ao postigo, algo que fiz mais por carinho ao café do bairro (“Europa”, como o da minha infância) do que por devoção à cafeína. Regra geral, e digo-o sem querer ofender ninguém, “café solo”, do outro lado da fronteira, só “con leche”! No entanto, quando assumimos esta religiosidade, aprendemos todos os truques e locais para desfrutarmos da “verdade do café”!
Escrevo esta crónica com o café bebido ao lado e, apesar do George Clooney ser o embaixador do expresso e do Malkovich ser o deus da Nespresso, sinto que o meu estilo não fica atrás do grisalho de Hollywood e, nestas coisas do café, Deus é português! Afirmo isto com a mesma segurança de um segredo de Fátima, porque, também eu, há anos, em pleno centro de Madrid, a metros do Palácio Real, tive uma visão: uma carrinha da Delta Cafés a descarregar um cheirinho familiar num pequeno bar. Não fiz mais nada, entrei no mesmo, como Ramón Gómez de la Serna entrava no Café Pombo da Calle Carretas, depois de longas temporadas em Lisboa, habituado a tomar café no Martinho da Arcada, na Brasileira, no Leão d’Ouro, no Nicola e no Montanha, e pedi, em alto e bom português, “é uma bica cheia, ó faz favor!”.
O café tem mesmo o dom de adoçar o indócil, de tornar entendível o incompreensível, e o empregado lá me serviu um “café solo” acompanhado por uma saqueta de açúcar a avisar-me do perigo de andar por aí a divagar sobre epifanias de cafeína: "É melhor estar calado e parecer parvo do que falar e esclarecer as dúvidas definitivamente". E não é que o camareiro era o Groucho Marx!
"Café solo" - Luis Leal |
"O humor abre espaço à sabedoria" - José Tolentino Mendoça |
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