O silêncio envelhecido numa sala com cheiro a fim. Ressonância
da minha adolescência, com a intromissão de uma televisão, de canto, à espera
que alguém lhe ligasse para que fosse apagada da companhia que não fazia.
O silêncio interrompia-se com a vontade da dinâmica do
animador sociocultural, formado para justificar certificados de tempo
disponibilizado institucionalmente tal como os fins-de-semana, dias de
efemérides ou sortes de feriados num calendário que acabará sempre sem meses e
cuja página final despirá uma verdade como a modelo Pirelli que já não tinha
roupa.
O silêncio ensinou-me o ser velho muito novo, ainda com bandas
desenhadas a acompanhar o vazio da mochila. A mãe de um dos primeiros amores - que
só passados tantos anos de bem-quereres damos conta que isso de numerais
ordinais para a desordem relativa dos afectos, que não passa disso mesmo,
amores- disse-me que havia algo envelhecido no meu ego adolescente, pareceu-me
que com carinho e sem o despectivo hormonal que essa fase borbulhenta da vida acarreta.
O presente talvez lhe dê razão.
Em silêncio, porque não havia como o derrotar, vi o fim e
a morte próxima dos outros acompanhados pela longevidade dos meus. Aprendi a
agarrar a memória em punhados de terra que tinham o som morto de madeira oca,
mas que nos meus ouvidos ainda ecoam a pás pisadas por pés, cravadas na terra
solta da cova que a ela retorna à lei da pazada.
Deus era presença habitual no meu bairro, um vizinho mais
com quem havia que ter boas relações e muito, e bonito, respeitinho. Um vizinho
que te podia emprestar ferramentas, fazer o nó da gravata ou se ia queixar aos
teus pais se te apanhava a dizer caralhadas em voz alta.
Sempre me dei bem com a vizinhança, com deus, e talvez com
o diabo que morava no quarteirão ao lado, havia que perguntar-lhe. Era educado,
de sorriso arrumado na cara que cumprimentava e sentia que éramos todos do
bairro. Mas não gostava do nariz metido bisbilhoteiro alheio a assuntos que
nada tinha que ver com ele. Por isso nunca compreendi muito bem este vizinho
omnipresente.
Houve uma época que o visitava com frequência na sua
moradia, algo espartana mas com a sensibilidade à vista dos vitrais que me
impressionava pela transcendência. Sempre me deixou entrar e eu lembrava-me da
voz da minha mãe a dizer limpa bem os pés antes de abrir com as costas das mãos
uma fila de fitas azuis e brancas penduradas nas suas próprias dúvidas. As
minhas boas intenções de entrada não impediam o intrusismo ou altruísmo de
alguma mosca. Como muitos mais passos e entradas feitas, hoje, vejo que nos
preocupamos demasiado com solas limpas, imigração de varejeiras e temos
demasiadas certezas.
O agora quase não fala com vizinhos, fala a circunstância
noutra língua que emancipou um pensamento com vogais mais abertas e alegres. A
educação do passado persegue-me nos bons modos, a afabilidade é mais que cara…
Mais que os meus olhos, óculos de várias dioptrias azuis, que o cabelo fino
claro na evidência de ficar grisalho ou na barba da preguiça com soberba por
pensar-se com alguma erudição.
O agora. O silêncio que houve sempre. Deus em silêncio
envelhecido que sinto com a televisão acesa para sentir-se acompanhado. Escrevo
com a certeza de envelhecer ainda mais a minha adolescência.
Diário VI/I/MMXV
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