terça-feira, janeiro 13, 2015

O silêncio envelhecido numa sala com cheiro a fim

O silêncio envelhecido numa sala com cheiro a fim. Ressonância da minha adolescência, com a intromissão de uma televisão, de canto, à espera que alguém lhe ligasse para que fosse apagada da companhia que não fazia.

O silêncio interrompia-se com a vontade da dinâmica do animador sociocultural, formado para justificar certificados de tempo disponibilizado institucionalmente tal como os fins-de-semana, dias de efemérides ou sortes de feriados num calendário que acabará sempre sem meses e cuja página final despirá uma verdade como a modelo Pirelli que já não tinha roupa.

O silêncio ensinou-me o ser velho muito novo, ainda com bandas desenhadas a acompanhar o vazio da mochila. A mãe de um dos primeiros amores - que só passados tantos anos de bem-quereres damos conta que isso de numerais ordinais para a desordem relativa dos afectos, que não passa disso mesmo, amores- disse-me que havia algo envelhecido no meu ego adolescente, pareceu-me que com carinho e sem o despectivo hormonal que essa fase borbulhenta da vida acarreta. O presente talvez lhe dê razão.

Em silêncio, porque não havia como o derrotar, vi o fim e a morte próxima dos outros acompanhados pela longevidade dos meus. Aprendi a agarrar a memória em punhados de terra que tinham o som morto de madeira oca, mas que nos meus ouvidos ainda ecoam a pás pisadas por pés, cravadas na terra solta da cova que a ela retorna à lei da pazada.

Deus era presença habitual no meu bairro, um vizinho mais com quem havia que ter boas relações e muito, e bonito, respeitinho. Um vizinho que te podia emprestar ferramentas, fazer o nó da gravata ou se ia queixar aos teus pais se te apanhava a dizer caralhadas em voz alta.

Sempre me dei bem com a vizinhança, com deus, e talvez com o diabo que morava no quarteirão ao lado, havia que perguntar-lhe. Era educado, de sorriso arrumado na cara que cumprimentava e sentia que éramos todos do bairro. Mas não gostava do nariz metido bisbilhoteiro alheio a assuntos que nada tinha que ver com ele. Por isso nunca compreendi muito bem este vizinho omnipresente.

Houve uma época que o visitava com frequência na sua moradia, algo espartana mas com a sensibilidade à vista dos vitrais que me impressionava pela transcendência. Sempre me deixou entrar e eu lembrava-me da voz da minha mãe a dizer limpa bem os pés antes de abrir com as costas das mãos uma fila de fitas azuis e brancas penduradas nas suas próprias dúvidas. As minhas boas intenções de entrada não impediam o intrusismo ou altruísmo de alguma mosca. Como muitos mais passos e entradas feitas, hoje, vejo que nos preocupamos demasiado com solas limpas, imigração de varejeiras e temos demasiadas certezas.

O agora quase não fala com vizinhos, fala a circunstância noutra língua que emancipou um pensamento com vogais mais abertas e alegres. A educação do passado persegue-me nos bons modos, a afabilidade é mais que cara… Mais que os meus olhos, óculos de várias dioptrias azuis, que o cabelo fino claro na evidência de ficar grisalho ou na barba da preguiça com soberba por pensar-se com alguma erudição.

O agora. O silêncio que houve sempre. Deus em silêncio envelhecido que sinto com a televisão acesa para sentir-se acompanhado. Escrevo com a certeza de envelhecer ainda mais a minha adolescência.


Diário VI/I/MMXV 

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