O primeiro mês do ano: Setembro
Nesta raia na qual vivemos, as
mudanças e as transições (transacções também, não sejamos hipócritas e ingénuos)
fazem parte da nossa identidade. Mudamos de país, acertamos relógios, saltamos
do espanhol para o português (e vice-versa), caímos no portunhol e contrabandeamos muito do que somos, do que consumimos e
do que nos consome...
Há já algum tempo que não
contribuía para a Rayanos Magazine,
pois sentia que a melhor crónica que podia oferecer (neste cantinho chamado Habitar) era o meu silêncio.
Esta ausência fez-me chegar a
Setembro, ao nono mês do ano que, carregado de afazeres e regressos de férias,
passa a correr como grande parte das nossas existências. Acabei a dar por mim a
imaginar o último dia de Agosto, os seus últimos doze segundos acompanhados por
doze uvas (ou passas de uva, dependendo de que lado estejamos da fronteira) e
Setembro nascer com honras de champanhe e fogos de artificio carregados de desejos.
Para mim, não só devido à minha
profissão, Setembro sempre foi o primeiro mês do ano. Porém, é Janeiro, do
latim Janus, que nos remete para a
mitologia romana associada à divindade cujo poder reside sobre todos os começos.
À figura de Janus associam-se também
portas, entradas e saídas, transições, o passado e o futuro, decisões e
escolhas.
Não tenho nada contra Janeiro, até
gosto bastante dos dias frios de inverno e ver essas decisões de ano novo que
tanto ajudam a vender revistas e a motivar likes
nas redes sociais. Mas o que me parece evidente, talvez fruto de um certo
cinismo de fim de Verão, é que ninguém quer ser quem é e os meses não são
excepção.
Já é hora de Setembro assumir a
fartura do imperialismo romano de Janeiro e declarar-se unilateralmente no
calendário como o primeiro mês do ano. Se é porque Setembro não tem as mesmas
características de Janeiro, ninguém pode utilizar esse argumento. O nono mês do
ano é tão ou mais dual que o primeiro cujo calendário vigente decreta. Setembro
reivindica-se como é: de extremos. Da amplitude da temperatura mínima à máxima,
do calor seco à humidade duma enxurrada iluminada pelos relâmpagos de uma
trovoada, pelos novos empregos e pelos fins de contratos duma época sazonal a
findar nas filas do desemprego, pelos nervos do primeiro dia de escola, pelas praxes
idiotas nas universidades, pelo regresso ansiado à rotina depois de se aguentar
a família que só se suporta nas férias, Setembro merece mais respeito e
consideração. Janeiro é bipolar por etimologia. Setembro é esquizofrénico
porque é o mês mais humano de todos os doze. Ao contrário da maioria, quer ser
quem é começa a questionar o porquê de ser o nono da fila e só ter direito
trinta dias.
Gosto de Setembro porque ele não
quer nada de mim e nem eu dele. Remato esta crónica e lá fora continua a chover.
Há beleza nesta luz rasgada no céu. Há violência nas inundações anunciadas
pelas ondas da rádio, essas mesmas que antes debateram a onda de calor. Apesar
de tantas vezes ignorado, pela pressa, pelo ressentimento do fim do descanso,
pelo regresso à labuta, Setembro faz-se notar, atira-nos à cara a nossa
humanidade e não nos engana com falsos deuses como Janeiro.
Setembro marca o meu inicio do
ano, talvez até mesmo o do meu caríssimo leitor, por isso permita-me formular
estes votos antes do último ponto final: bom ano novo.
"Setembro", foto de "Rayanos Magazine" |
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