quinta-feira, dezembro 27, 2018

«O Senhor Ventura», dia de Natal e quase porrada... (25/XII/2018)

Num banco da Praça Rodrigues Lobo, o sol do dia da Natal estava a deixar de ser convidativo para odisseia de «O Senhor Ventura», esse alentejano de Penedono que Torga imortalizou em 1943, um ano depois de ter abandonado a prática clínica nesta mesma cidade de Leiria. O frio a aumentar e o Pereira a expirar na história levaram-me a caminhar pelo centro histórico. Em jeito de homenagem à minha literatura de bolso, passei pela placa a assinalar o local do antigo consultório de Adolfo Rocha ("em literatura Miguel Torga") e continuei, pela Rua Direita (ou do Terreiro, não sei bem) a tentar evitar a rijeza a pairar-se-me sobre o corpo e a pensar em passos de poeta. Estes pensamentos não passam disso, uma má imitação. As minhas divagações encarregam-se de me pôr no caminho autêntico, de me atirar à cara ridículas emulações, pois sempre terminam com um ponto final parágrafo de realidade.

Por essa mesma zona, cruzei-me com dois indivíduos, jovens, roupas e boné hip-hop, tatuagens no pescoço, claramente sob o efeito do álcool ou das drogas. Sou de desconfiança discreta. Não estigmatizo, mas não abdico de estar alerta, detectar sinais. Acredito que para sobreviver, no sentido mais abrangente da palavra, necessito observar a natureza humana e, se necessário, desconfiar em silêncio, sem alarido. Assim foi, assim é.

Um deles, visivelmente, queria afastar-se do outro a falar-lhe alto, ao mesmo tempo que me abria passagem pelo velho e estreito urbanismo leiriense. O outro não, não se ficando por falar alto. Deu passos na minha direcção, parou-se no meu caminho, perguntando se eu era português. Instintivamente, dirigi os meus passos para a esquerda, afastando-me do bloqueio. Nesse momento, uma mão, a agarrar-me o ombro direito, intrometeu-se no meu corpo. O instinto não parou e o meu braço direito, sem o tronco se virar para trás, fez um rápido movimento circular que afastou e empurrou o intruso do meu espaço vital. O larga-me pá! simultâneo denunciou a minha nacionalidade, enquanto sentia o ar duma patada desequilibrada e um vitupério de filho da puta, levas um sovão! ou qualquer coisa do género em que insultava a minha mãe. Continuei o meu caminho, sem responder a provocações de anda cá, parto-te todo!, com o olhar periférico a controlar diagonais.

Ao virar da rua, ainda sem ninguém na mesma, senti a adrenalina a tremer-me as pernas e um ligeiro desejo de violência. Foi ligeiro, pois tal como me reconheço na necessidade da calma, também sei identificar perfeitamente a brutalidade do sangue e do contacto com os nós dos meus dedos. Talvez as aventuras do Senhor Ventura, alentejano secundado pelo jogo do pau do amigo minhoto, horas antes me tivessem pedido acção. Porém, o ponto final estava posto quando me levantei do banco para aquecer o que restava de luz do dia. 

Literatura e vida tendem-se a confundir. Não discuto, nem contra-argumento. Jamais algo que diga, ou escreva, trará algo útil à discussão. Eu apenas fiquei com mais um Natal riscado na fuselagem, um livro quase terminado no bolso e com a sensação ridícula de ter quase quarenta anos e ainda haver gente a querer provocar-me para andar à porrada, como nos meus, já quase longínquos, dezoito anos.

A prudência faz-me agora estar a escrever esta nota de diário e ver os meus filhos a brincarem e a rirem. Quando puser o ponto final, vou levantar-me e brincar à "porrada" com eles. A natureza ensina o leão a proteger os seus domínios. Nós de leões não temos nada, quanto muito um bocadinho de bovinos a pastar na charneca, mas temos o domínio da nossa integridade física e psicológica para defender. As pernas vão sempre tremer, esperemos que o menos possível.  





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