A
complexidade da coisa não poderia ser mais simples: o meu filho mais velho resolveu
questionar-me sobre coisas de infinito. Foi há um par de semanas e, como com
tantas outras perguntas, apanhou-me desprevenido.
Apesar
de ter oito anos, por acaso, até sabe que o “oito deitado” é o símbolo de algo
interminável graças à opção de um videojogo retro, o Street Fighter II, que temos em casa desde a minha adolescência.
Isso fá-lo intuir que o tempo não acaba, que o round não é cronometrado e, no centro da cidade, enquanto estávamos
a pôr os cadeados nas nossas bicicletas para evitar a ocasião fazer o ladrão, vira-se
para mim e diz-me:
-
Papá, o universo é infinito! Não acaba! Estamos a ver o universo com o Ismael...
(O
Ismael é o seu professor e quem, felizmente, o tem acompanhado nos seus
primeiros anos de primária, despertando-lhe ainda mais curiosidade do que
aquela que qualquer criança tem.)
-
É verdade filho.
Digo,
com toda essa certeza típica dum pai a esconder todas as dúvidas do mundo.
-
E há mais coisas infinitas papá?
Na
verdade, não estava à espera que a conversa continuasse, pensei que ficasse por
ali com a minha convicção pseudocientífica. A minha mente estava já no vaivém
espacial a caminho do universo da Feira do Livro de Badajoz, apesar de ainda
ter os pés bem no chão a preparar o seu irmão, o meu pequenito,
recém-desmontado da cadeirinha a pedir-me água enquanto lhe recordava as
palavras mágicas de “se faz favor”.
-
Sim filho, há mais coisas. Olha, por exemplo, os números.
Explico,
orgulhoso de ser um homem das humanidades que nunca fugiu da matemática. Porém,
oculto-lhe o estigma da inutilidade das letras em prol do pragmatismo dos
números. Lembro-me dum amigo cartesiano me dizer que sem a matemática nunca
conseguiríamos erguer uma ponte. Não lhe tiro a razão, mas quantos já
atravessaram pontes feitas com palavras e com palavras evitaram que fossem
derrubadas? No entanto, voltemos às perguntas do meu mais velho:
-
Porquê papi?
-
Porque não acabam. Começas no zero (acho que disse no um, mas não quero ficar malvisto
na crónica...) e nunca mais podes conceber uma paragem. Existe sempre uma noção
de que há mais para contar, que há mais números...
De
boca aberta, testa suada de ter vindo a pedalar, e cabelo amagado pelo capacete,
o meu gaiato não pôde ficar por ali. Continua a inquirir-me, a desviar-me a
atenção daqueles livros expostos no Paseo
de San Francisco.
-
Papá, e o que é que mais há de infinito?
Caramba,
o que é que havia de responder mais ao miúdo? Se sou sincero, o meu eu
abrutalhado pensava responder “epá, vai perguntar a quem saiba e não me
chateies!”. Por acaso, o Neandertal que há em mim não se sobrepôs ao meu alter-ego,
mais civilizado, a esforçar-se para educar, o melhor que pode, estes dois
satélites que rodeiam o planeta povoado pelo Luis e pela Elsa.
Tanto
eu como a minha mulher somos conscientes de que fazemos parte dum sistema
planetário repleto de pedagogia light,
pós-moderna, líquida, num batido de sabores que prima pela ausência de valores.
Sabemos bem que educar, hoje em dia, como diz Gilles Lipovetsky, é seduzir. Basta
vermos como vários papás e mamãs se limitam a condescender, a ceder a
caprichos, cheios de medo de perder o amor dos filhos se lhes disserem
"não" ou se se virem forçados a assumir uma postura de autoridade
paternal. É impensável uma criança ouvir, como tantos de nós ouvimos: “a pulga
já tem catarro?”.
Uma
educação de autoritarismo é terrível. Contudo, seduzir em vez de educar, usando
a lógica da publicidade, do estímulo acéfalo ao consumo, é igualmente aterrador.
Como diz o filósofo francês “a educação com sedução contribui para termos
crianças hiperativas que não sabem lidar com os constrangimentos”, rematando a
questão ao enunciar que “educar não pode ser seduzir, não é uma lógica de
sedução”. A voz de Lipovetsky é uma, entre tantas, que se atreve a recordar que
as crianças, apesar de serem o melhor do mundo, para serem adultos
significantes, por vezes têm de descobrir que não são o centro do universo, que
têm de se reduzir à sua insignificância...
Qualquer
um que leia o que vou escrevendo, vê que não sou modelo para ninguém. Sou uma
autoridade em dúvidas e em insegurança, mesmo que até tenha essa capacidade
interpretativa (digna dum Óscar!) em frente aos meus filhos. Esta conversa
interminável, este incomensurável inquérito, quase filosófico, do meu
descendente mais velho é um exemplo de como não sou exemplo.
No
momento não me lembrei de Einstein, mas a minha espontaneidade trouxe ao de
cima uma das suas máximas e respondi ao meu puto:
-
Olha filho, a estupidez! A estupidez é uma coisa infinita!
A
sua procura, a sua busca de entendimento de um conceito universal, uma
verdadeira “santa inquisição”, acabou à gargalhada, levando o irmão a rir da
melhor maneira, por contágio, sem saber porquê.
Para
mim, infinito e eternidade são sinónimos imperfeitos e há muito, antes mesmo de
adquirir o estatuto de progenitor, que abandonei a sua cruzada. Bastam-me as
suas rizadas infantis. Por enquanto, ter um pai estúpido, ainda é divertido.
"O Infinito" - Ilustração de S.L.P |
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