Quando penso em raposas, lembro-me sempre de duas: a Salta-pocinhas do Aquilino e «el zorrito» do Jonathan.
A primeira, astuta e matreira, é sumamente conhecida por todos aqueles que crescemos na segunda metade do século passado em Portugal e, a segunda, era uma cria de raposa, um raposinho, alimentado à mão por um antigo aluno de quem guardo gratas recordações e que costumava mostrar-me fotos de como ia crescendo a sua adopção selvagem.
Apesar de viver e exercer a minha actividade laboral numa cidade com mais de cem mil habitantes, nunca perdi contacto com o mundo rural. Posso mesmo afirmar que cada vez mais conheço e faço parte do mundo rural. Tal facto deve-se às circunstâncias e tento não pensar demasiado em como tal aconteceu. O mesmo se passa com o que hoje vivemos.
Há poucos meses, com a ajuda do meu filho mais velho, construí um galinheiro com material reciclado: paletes, chapas, restos de madeiras, ferragens, etc. Fi-lo pouco a pouco, ao fim-de-semana, terminando-o para o manter vazio até ontem, dia em que fomos a Portalegre e a Elsa e os miúdos decidiram trazer duas galinhas poedeiras para o nosso pomar e para os aposentos que eu fizera e ainda se encontravam por estrear.
No caminho, vínhamos a falar de quanto tempo podia durar uma galinha (mais de uma década, diz quem sabe) e os nossos pequenos até as baptizaram de Pepi e Dory. Chegados ao terreno, posto o bebedor de cinco litros e o comedor cheio de milho, os galináceos lá sairam da caixa de papelão para a minha construção com arquitectura e mão-de-obra própria. Preparei palha para o abrigo, fechei ferrolhos e ficámos um pouco a olhar para os animais a ambientarem-se à nova residência que acreditávamos ser mais digna que a loja de animais pouco diferente do aviário. Em troca de comida, apenas queríamos uns ovinhos postos por as galinhas do nosso campo.
Não posso dizer que sentira qualquer tipo de orgulho. Se o tive, foi há meses quando, com um resto de sucata e rede, construí um abrigo bastante decente para dois ou três animais munido unicamente de algum engenho e uma aparafusadora e serra do Lidl.
Ali estavam, a Pepita e a Dory, as galinhas dos nossos filhos, e voltámos para casa para iniciar uma nova rotina de guardar os resíduos orgânicos para lhes trazer cada vez que viessemos ao campo.
Num só dia enchemos um saco com restos de cascas de cenoura, batatas, alface, tomate, pão duro e mais algumas coisas que felizmente podem sobrar da nossa alimentação.
Passaram vinte e quatro horas e já estávamos de volta ao pomar, ao nosso terreno, para tratar de tudo o que ali temos e está vivo em comunhão com a terra e com os nossos sonhos de ver aquela paisagem ainda com mais vida.
Nem sequer tinha parado o carro, já sabíamos que algo tinha acontecido no terreno. Não fora um simples roubo de melões ou melancias por parte das lebres, não fora uma árvore tombada pelo vento, nem um tubo de rega roído pelo cão, as centenas de penas espalhadas pelo chão anteviam a rede arrancada dos agrafos e do reforço aparafusado em madeira até que chegámos ao vazio do galinheiro a denunciar a chacina do instinto animal, a lembrar-nos que o equilibrio da natureza sobrepõe-se à construção humana, à sua arquitectura precária, à sua tendência à domesticação.
Aqui já estamos acostumados ao ciclo da vida nas árvores que o sol seca e na sede que a nossa pouca água ainda vai matando. Já aqui vimos o passar das estações, já aqui vimos um antes, num olival idoso e enfermiço, e um depois, em jovens plantas de amendoeira...
Talvez por isso, os nossos filhos tenham aceitado melhor do que eu o terrível fim das suas galinhas, que foram apenas presas de um predador que é símbolo de inteligência e astúcia. Eu culpei-me por não ter previsto que as mandíbulas de uma raposa arrancariam a minha rede, que deveria ter reforçado ainda mais a estrutura do galinheiro, que, no fundo, não soube proteger aquelas vidas que tinha a meu cargo.
O dia foi quente, a noite refrescou no campo em ventosa que foi, e eu, aqui a pernoitar, acordo assustado com um pesadelo sem galinhas chacinadas por uma Salta-Pocinhas raiana. Acordei devido a uma actividade subconsciente, de que não me quero lembrar, mas que já não me permitiu dormir.
Lá fora já é de madrugada, ouvem-se os pássaros a iniciarem o dia, e o sol ainda é tímido para os quase quarenta graus que hoje lhe atribuem. Penso em voltar à construção do galinheiro, em que a minha teimosia será uma fortaleza inexpugnável para a matreirice pilha-galinhas. Mas, no fundo, quem é que eu quero proteger?
Eles dormem tranquilos, a Elsa também. Eu sou o único que escreve insónias, que acorda sobresaltado a pensar em guaridas, em refúgios inúteis.
Lá fora há penas por todo o lado. O vento, o tempo, vai tardar em levá-las...
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