segunda-feira, maio 04, 2020

Déjà vu

Este blog tem já quase quinze anos. Começou por uma coisa ser uma coisa minha partilhada com amigos e acabou por ser este espaço, este «sendero», em que apenas caminha o Pedro e eu. 
A sua existência coincide quase com o momento em que vim residir para Espanha e ao longo de milhares de entradas já se viveram umas quantas coisas.
No que concerte à minha aproximação à literatura, ainda hoje o pensava, vejo pouca coisa editável. O que foi escrito, mesmo que algum dia seja reutilizado, não o renego, está escrito e quem o escreveu já não é o mesmo. Não tenho medo do ridículo que fui, nem do que sou e pouco penso no que serei. Ao contrário de alguns escritores, este escriba não tem obsessões de perfeição e, tendencialmente, os pontos finais são mesmo finais.
Já a nível do que vou observando na sociedade peninsular, esta minha vida ibérica, tem-me permitido ver coisas que jamais imaginaria. Coisas boas principalmente, gente e locais que me ajudam a crer que o melhor de ser humano é a nossa capacidade evolutiva, dinâmica, que as nossas personalidades não são estáticas para bem das nossas essências. E a generosidade.
Antes sequer de saber o que era a generosidade, já a sentia. Cresci num ambiente generoso, porque cresci num ambiente de gente humilde. Não direi pobre porque estaria a ofender os meus pais que sempre me responderam à pergunta infantil de se éramos ricos ou pobres com a dignidade do remediado.
Vi muita pobreza, envergonhada quase sempre. Vi-a em alguns amigos da escola, poucos felizmente, e principalmente em idosos. Fui várias vezes carregar comida ao banco alimentar contra a fome com o Sr. Silva, estou a vê-lo perfeitamente, esse solidário ex-polícia reformado, e apenas já existe na minha memória.
Éramos do Bairro e ajudar era uma coisa relativamente normal. Hoje por mim, amanhã por ti.
Depois comecei a crescer e a ouvir da boca de quem mandava coisas como rendimentos mínimos, subsídios para isto, para aquilo. O Estado estaria a cuidar dos mais vulneráveis penso eu, hoje, mais letrado. Mas a par disso, começa a proliferar a pior das pobrezas, a de espírito. «Não querem é trabalhar!», «Querem é mama!», «Olha só, anda no banco alimentar, mas tem um IPhone», «Até lhe dão uma casa e anda um gajo aqui a trabalhar a menos de cinco euros à hora!», estas foram várias das frases que ouvi e algumas até as disse, indignado, quando vi uma casa do Sisa Vieira entregue a mãos de ciganos.
Se antes tínhamos tão pouco, a partir desse momento, com as políticas de desenvolvimento e o acesso ao crédito que permitiu o meu pai, depois de quase vinte anos, mudar de carro, ainda ficámos com menos. Tiraram-nos a consciência de classe e os pobrezinhos mas honrados do Estado Novo começaram a morrer. 
Atiraram-nos com a vertigem da tecnologia e atiçaram-nos o individualismo. Hollywood ajudou, a América campeã do bom e do péssimo catapultou valores de superação pessoal, de empreendedorismo e amputou a solidariedade à escala global. E tudo ia indo mais ou menos, com a boca adoçada pelo superfluo de se ir consumindo para além das nossas necessidades e das nossas possibilidades, até que uma borbulha no rosto do mundo que nos tornáramos rebenta em pus imobiliário.
A pior crise depois de 1929, gritavam alguns. Talvez ainda pior, gritavam outros. Bancos na bancarrota, bancos nacionalizados. Dívidas, desemprego, austeridade, troikas, divisões entre economias fortes, trabalhadoras e as fracas, preguiçosas. Pessoas sem dinheiro, pessoas na rua, pessoas adultas a viverem com a pensão dos pais. Pessoas sem direitos a sobreviverem de restos de direitos que não se renovam.
A generosidade não desaparece, é intrínseca a ser-se pessoa. Tem essa empatia de que sempre menos tem. A solidariedade é facilmente manipulada para caridade. É conveniente que assim seja. Eduardo Galeano, esse ser perigoso, nunca o esqueceu de mencionar em palavras e no olhar. A solidariedade é coisa de olhos nos olhos.
E no meio de tanta merda, desculpem mas isto não é um palavrão para uma geração que mandou foder a Troika, alguém disse em alto e bom som:
«Depois da crise nada vai ser como antes, o sistema capitalista tem de ter mais regulação do Estado, o capitalismo tem de ser mais social».
Foi-se sobrevivendo, o sol da Península e a dieta mediterrânea ajudaram na esperança de vida, o turismo virou panaceia («Somos a Miami da Europa!»), os nossos políticos tiraram licenciaturas e «Máster» da farinha amparo enquanto alguns foram de cana para dar-se uma ideia do sistema judicial ser independente do executivo.
A malta saiu das filas do desemprego e começou a trabalhar com menos direitos do que a geração dos seus progenitores e sem casas para alugar, mas com milhares de séries para ver em quatro ou cinco vidas. 
Entretanto sairam não sei quantas classes de redes G, abriram-se mais aplicações e redes sociais, sendo o Estado digital do Zuckerberg um Estado envelhecido e o Tik Tok a nova China das plataformas de banalidades.
E pelas minhas contas, cronológicas e de trabalhador «remediado», deu tempo para gente a mim próxima ser despedida em licença de maternidade, ir para a reforma com uma pensão de cerca de 300€, vários negócios fechado, outros abertos e passar a moda das barbas grandes. E, para mim, nem dez anos passaram.
Várias foram as vezes que mencionei a gente próxima parecer-me a malta já não recordar a crise de 2008. Quase sempre o fazia quando recebia no telemóvel propostas de créditos aprovados sem os ter pedido, o que sempre me fez pensar como reagiria um banco a emprestar-me dinheiro se eu verdadeiramente precisasse e só lhe pudesse dar a minha palavra.
E não é que no meio da peripécia de linguagens inclusivas, que não discutiram a situação dos proletários e das «proletárias», no meio de extremos políticos revisitados por estupidez de se apontar o problema e se discutir a problemática do dedo, bateu-nos à porta um vírus. Potente o magano e que tende a ceifar a vida dos mais velhos e indefesos. Os Estados impreparados, e sem equipamentos de protecção individual para a boa saúde do povo e da democracia, confinam a liberdade por um bem maior, o da saúde do colectivo. 
A deusa economia viu o culto ser relegado para o interior dos domicilios e foram feitas previsões e milhões de tutoriais de entretenimento. Lá fora a natureza continuou sem a maior parte de nós e mostrou que não precisa de nós para nada. Nós é que sem ela não somos nada.
A entrada já vai longa e a incerteza do amanhã para muitos é coisa que não me desabituou. Cada vez que leio, vejo ou oiço algo sobre esta crise só penso num déjà vu, mas com máscara, obrigatória e de um só uso. Será mesmo para nos proteger ou para nos ocultar que é sempre mais do mesmo?

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