sábado, maio 02, 2020

Epístola de um Quarentão em Quarentena

Epístola de um Quarentão em Quarentena

Badajoz, 2 de Maio de 2020

Querido Luis,

            Hoje fazes 40 anos. É verdade, tornaste-te quarentão e ainda estás em quarentena, apesar do país onde vives e no qual tens estado confinado já te permitir ires para a rua praticar desporto e passear os teus miúdos. Se tivesses tido o teu cão por aí, terias tido mais direitos, como bem sabes.
            Tens já 40 anos, 40 anos no traseiro, 4 décadas a aguentarem-te e tu a aguentares-te a ti mesmo. Se dividires a tua vida em 4 fatias, se lhe dedicares 25% a cada uma, terás um 100% vital a mostrar-te que não foste feito para contas, que a aritmética apenas se adapta ao fracasso científico que és. Hoje estás a cagar-te para isso, mas nem sempre foi assim.
Lembras-te na segunda década da tua vida quando abandonaste os estudos das ciências para te tornares um inútil das humanidades? Lembras-te da vergonha de teres voltado um ano atrás, quase o mesmo que chumbares, e a tua opção não servir para nada de proveito para a sociedade. Dissimulavas bem. Até te rias com os teus amigos, quando diziam que ias recitar versos, Shakespeare, desde os andaimes às raparigas que passassem pela obra onde trabalhasses.
Estavas habituado às obras. Viveste muitos anos numa casa em construção e o teu pai, desde cedo, te fez ajudar nessa empresa ingrata, mas que te dotou de bíceps robustos pouco vulgares num puto. Lembras-te de fazer cimento e carregares baldes de massa, enquanto passavam na rua as raparigas populares da tua escola? Bem te tentavas esconder...
Segundo a tua mãe, nasceste cedo, por volta das nove horas. Ainda hoje tendes a madrugar e nunca chegas tarde ao trabalho. Honras o teu passado proletário na pontualidade e na assiduidade.
O teu pai, nesse dia, foi com o teu primo Zé Farrapa para a “Vivenda” beber uma imperial em tua honra. Gostas de lembrar essa sinceridade de te terem brindado num prostíbulo. Dá-te graça e isso nunca foi tabu. A honestidade não feria suscetibilidades. Hoje nem tanto e tens de ter mais cuidado. Estar num sítio, não é ser esse sítio.
A tua avó materna, sempre tão sincera, disse em voz alta que eras um bebé tão feio. Talvez o tenha dito no diminutivo, ela era sensível aos coitadinhos e isso notava-se, tal como se notou o orgulho de te fazer sentir um belo menino. Sabia ler, pouco, mas sabia. Não acabou a primeira classe, contudo aprendeu a juntar letras e sílabas. O teu avô, o seu marido, de quem herdaste o apelido, não sabia. Era analfabeto.
Hoje fazes quarenta anos e olho para ti e vejo um gajo sem as vergonhas do passado, nem do presente. Vejo um tipo ciente de que não foi um anjinho, mas que nunca ascendeu a filho da puta (“fora a tua mãe”, como te diziam). Um tipo que até lhe podem atirar muitas coisas, muitos defeitos, à cara, mas que não gosta de fazer o mesmo. Um tipo paciente, mas capaz de ser violento se a coisa chegar a um extremo. Um gajo capaz de contemplar, de se emocionar, como é capaz de ter o pior dos pensamentos. Pensar, como no caso do bordel, não é ser. Um gajo com a moral de não estar para aí a moralizar ninguém.
Como vês caríssimo, não és lá grande espingarda. No entanto, és um homem fiel, ou, até hoje, assim o tens sido e queres continuar. Tanto és capaz de rir à gargalhada, de fazer barulho, de te impores com um humor que não rejeita ventosidades nem calão, como és capaz de desaparecer no silêncio. De esquivares o que te parece estéril. Nunca serás um homem de negócios. Nunca terás ouro, incenso e mirra, porque tens dúvidas que confessas a qualquer coisa maior do que te vai na mona.
Lá fora está um vírus. Uma pandemia. Tu estás bem. Os teus estão bem e, às vezes, sentes-te mal por estares bem. Como quando começaste a trabalhar naquilo que te possibilitaram estudar e não ficaste, como tantos que conhecias e eram amigos teus, no desemprego. Há que pense que isso é estúpido. Talvez. Com 40 anos até o compreendes, mas quando tens 26 a coisa parece mais complicada. Ouves “tu é que tens sorte” e ficas com a sensação de que não mereces a mesma fortuna.
Como vês, gostas de divagar. Já gostaste mais. Ao aproximares-te dos quarenta, começaste a prestar mais atenção às árvores, ao seu fruto, à sua sombra. Voltaste com os teus filhos a uma terra infantil que, à medida que foste crescendo, te disseram não ser para ti. Tu, ao contrário do teu avô analfabeto, terás estudos. Espera-se de ti um doutor, não uma enxada. O campo era a pobreza dos teus antepassados, não te acompanharão em noites de relento. A família cresce reduzindo-se. O tempo, se é que existe, deixas de o ver só no relógio e chegas aqui, a uns 40 anos que têm sido um grande rascunho de peripécias pouco pensadas, pouco esperadas, porém vividas.
Estás longe de confessar que viveste. Espero bem poder continuar esta relação epistolar contigo. Se puderes, responde-me, escreve-me de volta. Demora o que for necessário e continua a não ignorar ninguém que mereça o teu respeito. Eu espero estar nesse lote. Olha para quem tens ao teu lado. Continua a abraçá-los,  pois ninguém sabe se na próxima carta vai poder ser mencionado.
Sabes que não gosto de dar conselhos. Gosto de falar como tu, cara a cara e de preferência ao ar livre. Lembra-te que chegaste a quarentão em quarentena, a olhares por uma janela e o que estava lá fora não é muito diferente do que tens dentro.

Teu, sempre.

Luis Leal  

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