sábado, janeiro 15, 2022

Crónica: "Muralhas" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº158, p. 78)

Não gosto de trincheiras nem de barricadas, costumo associá-las à violência das ideias. Mas de muralhas gosto, talvez porque as associo a um desígnio de protecção da integridade de núcleos mais importantes do que as ideias, como, por exemplo, o pensamento crítico. Vulneráveis e mundanas como tantas outras, estas são as minhas “Muralhas” (publicadas na Mais Alentejo, nº158), foram erguidas com o fundamento que o saber não é tradição nem inovação, é pura atenção. Acredito que gente atenta, edificada no respeito, faz falta e é inconveniente para qualquer tipo de poder pelo simples facto de o seu pensamento ser difícil de derrubar. 

No me gustan las trincheras ni las barricadas, suelo asociarlas a la violencia de las ideas. Pero las murallas me gustan, quizás porque las asocio a un designio de protección de la integridad de núcleos más importantes que de las ideias, como, por ejemplo, el pensamiento crítico. Vulnerables y mundanas como tantas otras, estas son mis “Murallas” (publicadas en Mais Alentejo, nº158), se han erguido con el fundamento que el saber no es tradición ni innovación, es pura atención. Creo que gente atenta, edificada en el respeto, hace falta y es inconveniente para cualquier tipo de poder por el simple hecho de que su pensamiento es difícil de derribar. 

"Muralhas"

Vamo-nos mudar e lá começámos a tirar os livros. O meu filho mais velho, depois de se encarregar dos do seu quarto, veio ajudar-me ao escritório. Enquanto, do cimo das escadas, lhe passo volumes, diz-me com dez anos de convicção: “Papi, podíamos construir uma muralha!”. A sua existência ainda não lhe permite grandes metáforas e a proposta é lúdica, para coboiadas com o irmão (de “Nerf” na mão!) e brincadeiras de bonecada entrincheirada. Aceito a ideia, deveras tentadora, e não tivesse de empacotar a minha biblioteca, acumulada em pó que não cobre a sua inutilidade práctica e não me livra de espirrar.

Sei que bastantes destes livros amuralhados nos têm protegido de algumas imposições do exterior. No entanto, não nos escondemos sempre atrás deles. Há que ir para além da muralha e buscar leituras nas pessoas, na natureza, e cultivar o género do diálogo, a conversa enriquecedora que não costuma ostentar títulos de estante carregada, evitando-se assim empilhar em casa barreiras desnecessárias.

Ainda tenho muito para alombar e este é dos piores momentos para se partilhar com um livro, pois deixa de ser potencial, sendo só lastro numa bagagem que se quer ligeira. Se algo aprendi com tantas mudanças de domicílio, é que o melhor é não querer carregar com tudo. O peso exagerado de exemplares, mesmo quando estou em forma, acaba por me encurvar e até embrutecer. Antes até me ia equilibrando, em esforço, com um saco de supermercado em cada braço (esqueçam as caixas de papelão ou de fruta!), mas hoje deslizo num carrinho de transporte feito com uma velha tábua rasa e quatro rodas duma antiga mesa de estudo. Ao tornar-se apenas objecto, o livro abandona o plano das ideias e, para bem da nossa saúde, deve ser tratado segundo as leis da física, contudo, apesar das lombalgias de bibliografia, não me concebo sem livros, sem o grato vício da sua companhia e sem o prazer de os ter no horizonte, quer seja na cabeceira, na mochila do dia-a-dia ou no fundo do “trastero”. 

Antes do minimalismo em voga – resposta ao consumismo e à subsequente falta de espaço numa Terra a abarrotar –, ter uma biblioteca era sinónimo de riqueza e, mais importante, de liberdade. Eis por que os pirómanos da democracia gostam de reduzir a cinzas esta matéria-prima eficaz para amuralhar o espírito crítico. 1933 foi emblemático com um tipo de bigode ridículo a queimar milhões para impor o seu “Mein Kampf”! 

Há também outras formas de se incinerar um livro. Uma delas é sublinhando-o, não para reter o seu conteúdo, com notas pessoais e excertos marcados, mas sim com “lápis azul”, bem realçado na história da censura em Portugal. Actualmente, também se estão a fulminar clássicos pondo-lhes rótulos, isto é, etiquetas de racismo, sexismo, antissemitismo, etc., cujo preconceito leva leitores a julgarem textos conforme um presente que o passado do autor não permitiu contemplar. Pretéritos contextualizados à luz da contemporaneidade, sem moralizar, são perigosos, dado que exigem discernimento e isenção fora de moda. 

Identifico no meu passado o porquê de me abrigar em livros. Vi muitos obrigados a viver ao relento do analfabetismo. Gente que assinava com a impressão digital, envergonhada por dar trabalho a um funcionário com a almofada de tinta onde o seu dedo era menos que um vulgar carimbo. Dói-me a iliteracia massiva do passado (astronómica no nosso Alentejo), mas moralizá-la não altera o facto destas pessoas (entre elas o meu avô) terem sido impedidas do direito de saberem ler e escrever. 

Admito a fluidez do conhecimento, tal como as circunstâncias nas quais é adquirido, porém, o revisionismo dominante, tendencialmente acrítico, em vez de deixar os monstros inertes no passado alimenta-os de descontexto. Talvez a egolatria e a mediocridade elevadas a norma radiquem nos nossos antepassados, contudo, a actual propagação e glorificação da ignorância não têm vergonha. Perdi a conta às vezes que me manifestaram orgulho em desconhecer o básico, tanto na minha profissão, como no quotidiano. E já não penso nem bem, nem mal, sinto uma tristeza que prefiro ocultar. O que não escondo, sobretudo aos meus filhos, é que é possível edificarmos a nossa muralha com pouco e que, alicerçados em obras bem cimentadas, seremos difíceis de derrubar. 

"Muralhas" - Luis Leal



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