quinta-feira, março 27, 2014

Diário I: A minha aparição, nesta linha onde o Bexiguinhas matou aquela galinha.

“E, todavia como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir com palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras.” 
 Vergílio Ferreira, Aparição


Sento-me aqui nesta linha e recordo.
(Uma linha de pouco serve
Se se sentencia tudo pela mesma bitola)
Pé ante pé, na ferrugem do carril
Da largura da minha sola de sapato
Como percorri gerações de caminhos
De ferro por onde já poucas vezes passam
Comboios, automotoras, dresines.
Gente.

Todas as infâncias têm um descampado.
Algumas têm uma linha.
O meu passado escampado
Tem uma cabana,
A morte num cão, uma campa
Florida, rendida à inocência de dois irmãos e uma vizinha.
Tem uma raposa morta,
Uma salta-pocinhas escalpada
Da curiosidade esfolada à putrefacção.
Tem cardos. Tem fardos na paisagem seca da eira.
Mas tem pistas, montes, barrancos de bmx,
(Identificadas com esponjas no volante, cobertas com napa agarradas ao velcro)
Território ocupado pela gaiatagem do bairro que tanto
Atraiu outros ao seu território, atraiu a passar a linha.
As batalhas fronteiriças resolviam-se à pedrada,
A munição mais à mão de semear
Imperfeita como paralelos mas ótima para arremessar.
Não participei nestas épicas batalhas de joelheiras nas calças sem marca de ganga.
Não tinha idade, nem cabedal de fisga, para me alistar.
A salvo, pela linha, não fugi para casa, fiquei a observar
Camaradas a apedrejar pelo que era seu,
Sustido por carris aparafusados a travessas secas,
Manchadas a óleo
Das engrenagens do comboio.

Para que esta crónica seja digna
Encontrar-lhe-emos um prego,
Com um número qualquer
De dois algarismos.

Do maquinista que percorre a linha nasceu este cronista.
Montado no seu cavalo de ferro
Trazia para casa o bom cheiro
Que leva o que leva o viajante.
O cheiro do maquinista que, como aqui escrevo, conquista
O direito a apear-nos sãos e salvos, mais ricos.

O descampado não tinha trabalhos de casa. Já tinham que estar feitos e sem nenhum trauma.
Tinha a odisseia da feia vegetação e do entulho ilegal que todos entulhávamos e com o qual coexistíamos. Era esse o ambiente dos guardiães da linha.
Esta não seria a mesma sem um quarteto fantástico, como o que lia em bandas desenhadas brasileiras, mas americanas, com as minhas ilusões de heroísmo.
Eu. Um amigalhaço de bombeiros. Amigalhaço (amizade forte como o aço).
Com o Carlos. O melhor amigo que o Karate Kid podia ter.
E dois gémeos. Diferentemente iguais. Arqui-inimigos de primária sem os quais o meu heroísmo de bd não podia viver.
Como havia tanto amor em não suportar essas almas.
O Nuno Gémeo era para sempre o meu colega de carteira e certeiro com o seu sorriso que melhor me faz. (desculpa a camisa rasgada na emboscada na entrada da casa, dos prédios da caixa, da avó do Caíta)
O Luís Gémeo, irrequieto e desperto, colecionador de sacos de plástico de giz. (a professora ficou espantada depois de dizer:
- tragam todo o giz que tiverem em casa!
E aí a deixaste plantada, com a sinceridade de criança num saco de plástico cheio de cal branca com o qual escreveste esse episódio)
Lembras-te quando sacaste o corta-unhas (com capa grilos) ao Carlos? Que violência tão descarada! Como a espessura da tua juba, louca, adjectivo da pluralidade da nossa puerilidade.

A linha do nosso descampado unia todos. Une. Mesmo a linha ténue da memória. Da estação até Mora, Estremoz, Portalegre, ou até qualquer um de nós. Apeava e albergava um Carlos, um Luís, dois gémeos. Traçava a boa saúde de um bairro e parecia-nos, diante dos olhos, nos delinear a infância, dando-nos, ao mesmo tempo, hora a hora, um comboio para sair.
Eu saí. Apanhei o Lusitânia.
Mas continuo convosco sentado naqueles montes de torrões. Naquela terra.
A contarmos vagões.
Um. Dois. Três com a sigla da CP.
À frente conduz o meu pai. Esperamo-lo no descampado.
Olha pá, o Sr. Pinto acenou-nos descansado.
Tem a certeza que já fizemos o ditado
Porque esse era o nosso TPC.

quarta-feira, março 26, 2014

ABRIL por Luis Leal (artigo para "Moñino Times", 2014)

No es la primera vez que escribo sobre abril. Ni la segunda, y no me parece que vaya a ser la última. No escribo sobre el cuarto mes del año, ni de su perspectiva en el calendario, de cómo puede tener aguas mil o primaverales sonrisas abiertas por días soleados. Eso tiene que ver con milenios de herencia climatológica y no se puede confundir con este Abril de la “ternura de los cuarenta” o, teniendo en cuenta la coyuntura actual, el Abril de la crisis de los cuarenta, como le venden la moto, sin que le haga falta probar que mantiene su espíritu original.
Seguro que, los más atentos, o los que conozcan un poco del siglo XX portugués, sabéis que escribo sobre “otro” Abril, que me atrevo a escribir con mayúscula, quizás más lírico que primaveral, un Abril florido por la libertad agarrada, con el puño cerrado, a un clavel. Eso se pasó hace precisamente cuatro décadas, en el 25, ese clavel salió a la calle y acabó con una de las dictaduras más largas del último siglo.
Portugal, este país aquí al lado, este hermano de raya recortada de 1234 km dibujada a lo largo de ocho siglos, es evidentemente pequeño y residual para la economía mundial. Se caracteriza por PIBs y presupuestos generales raros, rectangulares (como la forma geográfica que adoptó como su frontera, la más antigua de Europa), con crisis anacrónicas que insisten en seguir en el orden del día (al mismo tiempo tan útiles para justificar desigualdades que se perpetúan en su DNA sociocultural), pero a esto se junta un efecto antiinflamatorio y baños de iodo en un atlántico paliativo vigilado por Fátima, la virgen vigilante de la playa.
Si hablamos en estos términos tan de moda de macroeconomías  (léxico de microespíritus y empatías deficitarias), potencias, tipo G7 (una menos, porque estamos enfadados con la Federación Rusa), el país vecino no se impone. La única G que conoce es de la ametralladora G3, recuerdo del estrés postraumático del Ultramar, herida abierta obligada, infectada, o, en buen día, en un ambiente de optimismo que no abunda hoy en día en el seno de Troikas, FMIs o austeridades, le podrá recordar que esa misma arma fue callada por claveles rojos, sin ideología pero de esperanza.
Es en este ámbito que Portugal se puede imponer. Con su cultura, su historia real, no solamente trágica, para justificar un “fado” patrimonio intangible de la humanidad, el lirismo es igual de intangible y su insolvencia mata tanto como la escasez de pan.  
Hace cuarenta años, este pequeño país amordazado devolvió la esperanza de libertad a una península sumergida, aislada, por dos regímenes cómplices, pero, convenientemente, de espaldas.
Hace cuarenta años, en una mañana fría de abril, según los versos de Pedro Ayres de Magalhães, “un gesto puro coincidió con la multitud que todo esperaba y descubrió que la razón de un pueblo entero lleva tiempo a construirse”.
Hace cuarenta años, quien vivió Abril, se acostaba con la sensación que había cambiado el mundo. La historia hoy nos dice que sí. Es verdad. La gente ya podía ver en los cines la violencia “for the sake of violence” de “La Naranja Mecánica”, el erotismo de mantequilla de “El Último Tango en París” y, también, el sentido común de Burt Lancaster en “El Gatopardo”.
Se pasaron cuarenta años. El gesto puro creció y una multitud centrífuga le apartó de su esencia. Es decir, emigró. La esperanza se fue con el huracán Maddof (de los mercados), pero en facebook dijeron que algunos pelos se quedaron en los árboles. Pronto se esperan más tweets.  
Sin embargo, yo sigo aquí, delante del ordenador, seguro que escribo sobre un Abril portugués, pero con la sensación que, si TVE me llamara, sería capaz de hacer una transición democrática para un episodio de “Cuéntame”, hacer el puente con la realidad de la simpática familia Alcántara. 

segunda-feira, março 17, 2014

El reloj de la biblioteca


El reloj de la biblioteca

En la pared de la biblioteca,
Las agujas del reloj se vuelven atrás.
El defectuoso mecanismo,
[Crónico],
Me obliga a aceptar,
[Colgado],
Que el pasado
Es evidente delante de nuestros ojos.

Todo este tictac,
Viajero en el tiempo,
Me despierta,
Como una aguja que me pincha,
Con el dolor
De no poder volver atrás.
Abrazar tu olor.

Pero, lo peor,
Es que este reloj
No tiene futuro.
Ni esperanza de arreglo.
Pues no merece la pena
Invertir tiempo en el tiempo.

Definição de lirismo

Li-ris-mo:
(substantivo masculino)
Hipotecar-se para que a sua poesia possa publicar-se.

sexta-feira, março 14, 2014

domingo, fevereiro 23, 2014

Um desenho de Paulo Ito





Paulo Ito, paulista, desenhou este Dia mundial com carro. E deu os parabéns aos motoristas... :) 



sábado, fevereiro 22, 2014

Câmeras fotográficas antigas #2: 1880-1900



Nas últimas décadas do século XIX as câmeras fotográficas evoluíram bastante e tornaram-se mais pequenas, mais leves e mais acessíveis. Um dos factores por trás desta evolução foi o aperfeiçoamento das chapas e das emulsões sensíveis; o outro chamou-se George Eastman. Este é o segundo artigo dedicado às câmeras fotográficas antigas.

Obvious (tem também o primeiro artigo)





sexta-feira, fevereiro 21, 2014

A uma quadrada pedra que apanhei e me acompanha no caminho...

A Pedro L. Cuadrado.
Que nunca quis ser meu mestre,
mas sim meu amigo…
Não há forma mais humilde de mestria.

33 anos nos separam desde o meu berço.
É a única raia, certificada, que entre nós existe.
O nó cego, esse, bem penteado, não se desate,
não desaperte a corda atada a Pedro, minha

pedra, papel, pilar lírico de apontamentos
na margem esquerda do livro, o lembrete,
a lápis que não rejeita um verso, quanto
mais três, a quem quer que por bem vier.  

A mestria da grandeza do infinito é subtil,
e inútil, convenhamos. Adversa à rima,
à métrica, a cartesiana estética do útil

não nos faz advir sem a tétrica do contratempo.
Encurtam-se braços de abraços. Apartam-se pedras
de sendas angulares e, a paisagem, essa, paupérrima.


(Sem que de isso, uma inteira existência, nos tenhamos dado conta. Passa-se e não nos apercebemos que os melhores pilares são feitos de pedra. Granito frio, extraído em Zamora e trabalhado por mães de artesãos salmantinos. A erosão do tempo foi-o levando rumo ao sul… onde, como dizia Gedeão, “me sento e descanso”)

quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Carta ao Pai (Fernado Tordo)


Seguem-se as linhas que o escritor João Tordo dedicou em carta ao seu pai, o músico Fernando Tordo, que aos 65 anos, emigrou para o Brasil.


" Ontem, o meu pai foi-se embora. Não vem e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos.

A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira.

Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar.

Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida.

Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros.

Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós – e como todos os autores destes singelos insultos –, fez aquilo que lhe restava fazer.

Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje – Carminho, Carlos do Carmo, Mariza, são incontáveis –, fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música.

Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha.

Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país – do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar.

Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui – e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte –, pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora."

João Tordo
in PÚBLICO, 19/02/2014

terça-feira, fevereiro 18, 2014

O resgate do soldado português - António Orla (1998)


Amor

O amor não se encontra. Faz-se.
Respira-se, transpira-se, chora-se, ri-se.
Nasce e morre.

O amor não tem primeira,
Nem última vista. É míope.
Vê melhor ao perto que ao longe.

O amor não tem idade.
Aprendes a relativizar


Na infantil maturidade.
E, com sorte,
Antes que te separe a morte,
Rir-te-ás com humor de velho
(cúmplice de ti mesmo
numa gargalhada rouca de companhia
daquele com quem pudemos ter
a última conversa do dia).

O amor é aquilo que se vai fazendo dele.
Em português são quatro letras
Para cinco sentidos

E apenas uma vida.

domingo, fevereiro 09, 2014

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Uma questão de costumes (Fernando Campos)



Uma questão de costumes, de Fernando Campos, no seu blogue osítiodosdesenhos.






Drummond e O'Neill



Só pelo acaso é que aparecem aqui estes poemas de Drummond e O'Neill. Bem-vindos sejam sempre estes dois poetas às nossas mãos.


JANELA

Tarde dominga tarde
pacificada como os atos definitivos.
Algumas folhas de amendoeira expiram em degradado vermelho.
Outras estão apenas nascendo,
verde polido onde a luz estala.
O tronco é o mesmo
e todas as folhas são a mesma antiga
folha
a brotar de seu fim
enquanto roazmente
a vida, sem contraste, me destrói.

Carlos Drummond de Andrade

Lição de coisas (1965)


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TOMA TOMA TOMA

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O'Neill

A saca de orelhas (1979)





quarta-feira, janeiro 22, 2014

O mau uso da lei da gravidade - Gonçalo M. Tavares

Dentro de mim, tenho a certeza que o Gonçalo M. Tavares quando escreveu o ponto número seis desta crónica se lembrou de um dia, há um ano atrás, em que um "espanholito", de boina inquieta e filosófica, lhe falou, em terras pacences, acerca do seu apreço pela obra do poeta Paul Celan. Esse dia, o mais chuvoso da minha vida, ficou-nos marcado pela erosão da água em ambos. Não de Tavares, mas sim em mim e nesse meu “hermano” que, no pânico e violência da água, não se veem rosas. Somente a pressão do ferrolho de que não controlamos o nosso destino. Alternamos entre portas bem fechadas e postigos que vislumbram roseiras belas com orvalho, a pingar, nos picos.

Ronaldo, o Estrangeirado


domingo, janeiro 19, 2014

domingo, janeiro 12, 2014

"Especulações Escatológicas" Dois poemas de Augusto Gil

Há já algum tempo que não percorria estes “senderos”. Verdade. Fruto do imediatismo das redes sociais esqueci um pouco este espaço que para mim é mais que uma mera gaveta de papéis digitais. Menos mal que o meu grande amigo Pedro L. Cuadrado, o melhor cúmplice que poderia ter neste espaço, não o deixa morrer. Então, neste primeiro post de 2014, volto com um tema (ou temas) para mim tão especiais. Poesia e escatologia. Apresento-vos esta pequena obra do poeta da Guarda, Augusto Gil, “Especulações Escatológicas” publicadas pela “Bosq-íman:os”. Um especial obrigado à minha amiga Catarina Lages que mo apresentou.





sábado, novembro 30, 2013

Do blogue 'Bianda'


Ó Luís, de um blogue feito em Cabo Verde: se calhar dá para acrescentares a esse teu trabalho dos palavrões, esse work in progress:


Filhos Radicais (Pais segurando firme)

Naia: Pai, hoje começamos a aprender os ordinais: sexagésimo, septuagésimo, octogésimo..
Eu: Uau, consegues até dizer essas palavras todas de enfiada!...
Naia: É, a professora disse que são palavrões, mas palavrões que podemos dizer - tratou de pontuar.
Eu (com súbito interesse): Ah é? E que palavrões que não podem dizer?
Naia: Mas não posso dizer!!..Mas tu dizes, papá, quando estás chateado..Dizes muito um que começa com P e termina com A.
Eu: Ah é, digo tanto assim? Hmm...E que outros conheces?
Naia (com um sorrisão): conheço um que está em "computador"
AHAHAHAHAHAH (Saiu-me uma gargalhada dessas do fundo do poço!)
Eu (com acrescentado interesse): Que mais?
Naia: Tem um que começa com M e termina com A
Eu (apavorado com a direção da conversa / mantendo a pose de cool)
Naia:...Acho que só conheço esses 3... (ela deve ter lido uma prisão de ventre repentina na minha cara e saiu com esse tranquilizante)
Eu (fingindo autoridade): Mas diz-me, onde se aprende isso tudo?
Naia: Ora, os meus colegas dizem palavrões a toda hora!..(a safadinha se safou)


Blogue Bianda (pub. 13.11.13)




sexta-feira, novembro 22, 2013

O rapaz da camisola verde (Pedro Homem de Mello)



 Poema de Pedro Homem de Mello cantado por Sérgio Godinho.


O rapaz da camisola verde

De mãos nos bolso e de olhar distante,
Jeito de marinheiro ou de soldado,
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Perguntei-lhe quem era e ele me disse
“Sou do monte, Senhor, e um seu criado”.
Pobre rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado.
Vai-te, rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ouvindo-me, quedou-se o bravo moço,
Indiferente à raiva do meu brado,
E ali ficou de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Soube depois ali que se perdera
Esse que só eu pudera ter salvado.
Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.


Pedro Homem de Melo



(Mais dados em Santa Nostalgia)





segunda-feira, novembro 18, 2013

Auto-retrato (Alexandre O'Neill)



Depois de reler mais uma vez o auto-retrato do grande Bocage, venha cá o auto-retrato do grande Alexandre O'Neill:


AUTO-RETRATO

"O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angustia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omite-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada …)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse ..."




quarta-feira, novembro 13, 2013

Segundo balcão dos bombeiros (Fernando Assis Pacheco)


SEGUNDO BALCÃO DOS BOMBEIROS

Nesse tempo eu já lera as Brontë mas
como era um adolescente retardado
passava a noite em atrozes dilemas
que mais vale: amar, ser doutrem amado?

ainda não descobrira o simples disto
nem o essencial disto que é tão claro
se tudo no amor vem do imprevisto
deitar regras ao jogo pode sair caro

por isso eu amo e sou ou não benquisto
depende do instante bem ou mal azado
amor tem alegria, tem enfaro
o happy end é coisa dos cinemas

Fernando Assis Pacheco

(Em Arlindo Correia)


domingo, novembro 10, 2013

Ofício de amar (Al Berto)



OFÍCIO DE AMAR

já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
de outras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo

Al Berto





quarta-feira, novembro 06, 2013

LISBOA-1971 (Jorge de Sena)













LISBOA-1971


O chofer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto «calçar» uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas de sopa do convento.
Mas o chófer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
«...V. que nesse tempo andava a fugir
de colhão para colhão de seu pai
para ver se escapava a ser filho da puta...»
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5 Agosto 1971

segunda-feira, novembro 04, 2013

quinta-feira, outubro 31, 2013

no dia de todos os mortos

(por quem não me esqueci)

inteiriço e frio nasce o sol no dia de todos os mortos.
com um caminhar apagado
passo.
o vendedor arruma consolador
cada flor na bancada
(ordenada pelas mais tristes sortes)
margaridas, crisântemos, cravos, lírios
plantas canónicas sem santa sé.
umas outras tantas, pagãs, que não perecem.
plástico que impede o pranto das velas
e o solidificar das lágrimas,
como as salientes veias das mãos de quem as acende.
passo
à frente de gente que vela finados
e a porta do cemitério (sempre aberta) fechada a cadeados.
Eu passo.
(horário das oito às dezasseis, exceto feriados).
o olhar do vendedor e o meu cumprimentam-se num atalho
(conhecemo-nos e os nossos olhares também)
nunca lhe comprei nenhuma flor,
(para a dor tenho um jardim secreto)
e eu passo comigo oculto em reminiscências.
minhas.
dos meus.
dos que não me serão omitidos.
(já eu não sei se terei flores de época ou de molde perene de poliuretano
- hoje por hoje não quero- amanhã quem sabe?)
afasto-me, mas passo.
deixo os primeiros bafos a cristalizarem o ar
na breve chegada de mais um inverno.
passo e aparto-me do constrangimento da memória
aproveito a porta aberta aos cadeados do corpo
e a entreaberta janela curiosa do espírito.
vou fugindo enquanto posso.


MMXIII

segunda-feira, outubro 28, 2013

Maria dos mil sorrisos (Vitorino)



Havia muitos anos que não escutava esta beleza do amigo Vitorino. Dei por acaso com ela e que saudades, meu amigo!


MARIA DOS MIL SORRISOS

Maria dos mil sorrisos
Alma ao largo sem avisos
Coração a dar a dar

Lua nova em céu mortiço
te proteja do enguiço
e das fúrias d´além mar

Na rua onde tu passas
Mandei embora as desgraças
Num copinho de licor

No mistério da tua porta
encontrei morada certa
P´ra dar de beber à dor

Se me deres o teu retrato
Dou-te o meu lenço bordado
Com a flor do laranjal

Anda agora muito em moda
Trança negra rubra rosa
Rebuçados no amar

Maria não vás ao beco
Está cheio de figas e medos
Vê lá bem os meus cuidados

Dos teus olhos estou lembrado
Num dia no Bairro Alto
Seus amores tão delicados



domingo, outubro 27, 2013

.o voraz mercado

o voraz mercado
é um substantivo, insubstancial e selvagem,
pelos mortais concebido
a quem muita gente não lhe interessa que seja domado.

não é um cataclismo natural,
nem divina vontade.
é apenas plutocracia circunstancial,
capitalismo anti-social
sem senso comum,
apenas ânimo de numérico resultado,
para tragédia do necessitado
e abundância na algibeira que enche
de gente inconsciente que
num mundo onde não caiam umas migalhas para o pobre,
não há condomínio fechado que os aliene do cheiro a podre.

o metano é um gás que não tem nada a perder.
da imoral flatulência e verborreia a que se está habituado
brota a violência e o caos indiscriminado.
por isso, desacautelado mercado,

cuidado.

à parede encostada a puta segura um intervalo

à parede encostada a puta segura um intervalo, contado em milésimos de fios de tabaco consumido enrolado em anéis queimados de papel a cada cilíndrica passa.

entre lábios secos de amor o cigarro esvai-se em ofegar cansado lunar  e em saliva de ladrilho com restos de esperma sem nome.

antevê-se de perfil a lingerie de uma lua solitária que apenas o deixa de ser quando alguém que passa,
paga. 


Lienzo de Isabel Diaz Gómez - “naipe o mujer fumando” -1975

quinta-feira, outubro 24, 2013

My first umbrella...


A verdadeira justiça, divina ou cega, segue o imprimir linear do extrato bancário, logo não se pesa na balança.

Para ti Wang Wei


Apresentação da Noite - Al Berto

Deixei o MEDO para o dia e apresentaste-me a noite. Falamos com a ponta dos dedos. Não sei se sou teu. Não o seberás tu?


O que descobri aos 33? O meu complemento circunstancial de estupidez.

Mata-me

Mata-me com o teu sorriso,
certo e luzidio.
Mata-me com o teu olhar,
terno e profundo.
Mata-me com o teu perfume,
doce e mordaz.
Mata-me com o teu amor
que me põe louco
e pouco a pouco
meto a tua corda
em volta do meu pescoço.


1996 
(Para uma aula qualquer em que tive coragem de ler algo adolescente por mim escrito. Se bem me lembro para a aula do meu professor Manuel Piçarra, mas não me lembro em que pensava quando o escrevi… ou em quem pensava. Talvez em ninguém em especial, ou não. A adolescência tem dessas coisas. )

quarta-feira, outubro 23, 2013

Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida (José María Valverde)



Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida

Tendrías quince años cuando quedaste inmóvil
aquí, en la cartulina de suavísima niebla.

Te vuelves a mirarnos -con unos ojos negros,
dulces, hondos y frescos como grutas-
desde el escorzo grácil de tu cuerpo.
Dime, ¿de dónde viene tu mirada?
Habla de cosas dulces y pequeñas,
de tu vida, tu casa,
tu piso, bosque umbroso de sueños y recuerdos,
-tú eres la cierva blanca en su espesura-,
el balcón donde ves pasar las nubes,
los viejos y borrosos retratos de la sala,
las butacas de verde terciopelo gastado,
el piano, negro, mudo, con ecos, -como un pozo-,
y el bullir y las voces, apagadas
y vagas, de la sombra en los rincones...
(¡Ay tus sueños de niña!
¡Cómo están en el fondo de tus ojos
muriendo dulcemente!
Estrenabas la vida;
aquel día morías y nacías.
Y aquí, en este retrato,
frente al blanco camino,
dejaste tu niñez en la mirada.)
Esa luz que ha quedado contigo prisionera
en tu clara laguna,
es la luz que conservan
las cosas de la abuela puestas en la vitrina.

Ya te habrás olvidado. ¡Qué muerta estás aquí!
¿Dónde estarás ahora?
...Días, calles, olvidos, amores y tristezas,
relojes, calendarios, trajes, cuerpos, ventanas,
tejas, lluvias, tarjetas, zapatos ya gastados,
tranvías, ruedas, nubes, sueños, tardes, mañanas,
inviernos y veranos, rosas secas, revistas,
muertos, libros, silencios, músicas, risas, llantos,
arroyos y caminos, montañas, bosques, mares,
y un montón de minutos iguales como arenas
me separan de ti.
Pero en mi orilla queda tu retrato olvidado.

...Tendrías quince años. Yo, entonces, estaría
paseando mis sueños de niño no sé dónde.
¿Dónde estarás ahora?
Oh muchahca lejana que quizá hubiera amado
de no ser por el tiempo, el tiempo... siempre el tiempo...

José María Valverde

Publicada por primera vez en «Entregas de Poesía» n° 14, 1945

Más poemas de Valverde.

segunda-feira, outubro 21, 2013

ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS - José Maria Valverde

Poeta y traductor extremeño José María Valverde (1926-1996), destaca en su obra su profundo humanismo de raíz cristiana y el rigor de su lenguaje poético, para mí de incomparable belleza con ecos de clasicismo poco ortodoxo. 
Un buen hallazgo en las ironías de la vida y en los fondos de la biblioteca de mi centro. Su oración hace parte del catecismo de mi religión. 
ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS
Señor, ¿qué nos darás en premio a los poetas?
Mira, nada tenemos, ni aun nuestra propia vida;
somos los mensajeros de algo que no entendemos.
Nuestro cuerpo lo quema una llama celeste;
si miramos, es sólo para verterlo en voz.
No podemos coger ni la flor de un vallado
para que sea nuestra y nada más que nuestra,
ni tendernos tranquilos en medio de las cosas,
sin pensar, a gozarlas en su presencia sólo.
Nunca sabremos cómo son de verdad las tardes,
libre de nuestra angustia su desnuda belleza;
jamás conoceremos lo que es una mujer
en sus profundos bosques donde hay que entrar callado.
Tú no nos das el mundo para que lo gocemos,
Tú nos lo entregas para que lo hagamos palabra.
Y después que la tierra tiene voz por nosotros
nos quedamos sin ella, con sólo el alma grande…
Ya ves que por nosotros es sonora la vida,
igual que por las piedras lo es el cristal del río.
Tú no has hecho tu obra para hundirla en silencio,
en el silencio huyente de la gente afanosa;
para vivirla sólo, sin pararse a mirarla…
Por eso nos has puesto a un lado del camino
con el único oficio de gritar asombrados.
En nosotros descansa la prisa de los hombres.
Porque, si no existiéramos, ¿para qué tantas cosas
inútiles y bellas como Dios ha creado,
tantos ocasos rojos, y tanto árbol sin fruta,
y tanta flor, y tanto pájaro vagabundo?
Solamente nosotros sentimos tu regalo
y te lo agradecemos en éxtasis de gritos.
Tú sonríes, Señor, sintiéndote pagado
con nuestro aplastamiento de asombro y maravilla.
Esto que nos exalta sólo puede ser tuyo.
Sólo quien nos ha hecho puede así destruirnos
en brazos de una llama tan cruel y magnífica.
… Tú que cuidas los pájaros que dicen tu mensaje,
guarda en la muerte nuestros cansados corazones;
dales paz, esa paz que en vida les negaste,
bórrales el doliente pensamiento sin tregua.
Tú nos darás en Ti el Todo que buscamos;
nos darás a nosotros mismos, pues te tendremos
para nosotros solos, y no para cantarte.
Hombre de Dios, 1945.

domingo, outubro 20, 2013

De repente acordas

De repente acordas
E um filho salta-te para a cama.

De repente assentes
O absurdo nascer do dia a galgar
Entre lençóis, sonhos e despertares recentes.

De repente sentes,
Num qualquer domingo,
Que, no mundo, curiosamente,
Pudeste ter um descendente.

De repente, olha-lo de frente,
Paralelo a ti, no ar esticado dos teus braços os primeiros quilos de sorrisos
A aprenderam sílabas, e depois, palavras que tudo poderão abortar
Se um dia quiserem adivinhar que:
“De repente se acorda e um filho nos salta para a cama”.
20/X/2013

Aprende a não esperar muito por ti, pois nem sempre chegarás a horas.

O Irreal Quotidiano (José Gomes Ferreira)

"Na semana passada, certo inglês, de passagem por Lisboa, quase me implorou, farto do Idêntico em toda a parte:

— Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há?

Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:

— Há. «Cabarets».

O senhor estrangeiro encolheu os ombros em trejeito de desdém. Mas eu teimei:

— Sim. «Cabarets» …«Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. «Cabarets» … do avesso em que não se encontram mulheres de riso fatal a dançarem ao som macabro do estalar das rolhas das garrafas de champanhe. Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas, com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.

Tomámos um táxi, descemos uma viela sonâmbula, abrimos a porta de vidro em frente e pisámos com reverência o veludo do tapete de cascas de tremoços do Salão de Fados em que duas dezenas de seres, palidamente diluídos no rumor das vozes em surdina, se preparavam para sofrer em comum.

Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos fantasmas, para não perturbarem a dor dos clientes que, de cabeça pesada entre as mãos, parafusavam neste tema de meditação irresolúvel: «A vida é uma chatice!» (…)

Ia começar a função. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas mortas…

Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade".





domingo, outubro 13, 2013

A ti, José Maria Valverde

Para ti os poetas eram sacerdotes da palavra,
Almas a jeito que Deus as escolhesse a dedo,
Para viverem o purgatório na terra,
O purgatório no purgatório
E o inferno na alma...

Tudo porque, José Maria,
Homem de Deus, da santíssima trindade e da tua e sua mãe,
Existe a beleza e o coração do poeta, ao contráriomdo que canta a canção,
É pequeno e almeja guardar a beleza como outro qualquer coração.

Não existe nada de santo nisso. Apenas falta de espaço.
O poeta tem um mini, um citadino e o homem alheio a verso, rimas e compassos
Tem uma enorme mala que dá perfeitamente para trazer as compras do mês e ainda levar a bicicleta no tejadilho.
Essa, José Maria, da terra nossa comum, é "la enseñanza de la edad".

Passagem por sublinhar, sublimar.

Passei pela vida sem usar bloco de notas.
Nunca tive um instante de instantânea,
Nem obturei momentos kodak, polaroid, agfa ou fugi
De ser emoldurado para a posteridade de parede,
Ou da orgulhosa camilha da avó?

Nunca me enrruguei ou amareleci na estante. Amanheci com o sol
Que talvez pudessem ser amarelo fluorescente para sublinhar, sublimar,
Que a vida, tal como o rei dos astros, também tem nascente e poente.

Nunca me dobrei, a não ser a esquina de página,
Para marcar um encontro com um amigo, com um amor,
Com a dor de costas que teima em encurvar-te...
A desumanizar-te com o afã do sucesso da máquina.

Deixei, ao menos, que me metessem recortes de jornais,
Artigos e matérias inúteis que me engordaram como o arroz doce que nunca é demais...
Não estou riscado, ainda tenho o papel pegado, como todo o bom livro que não foi profanado
Mas anda de lado para lado, a presumir deixar algum legado,
Esse sou eu. Fui eu.
Estou enterrado.
Pouco vivi.
Mas abracei
E fui abraçado.

sábado, outubro 12, 2013

Velho Colono (Rui Knopfli)

Parque dos Namorados, em Maputo
 (Fotografia no blogue cabeça no ar ou ar na cabeça)


Velho Colono

Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,
certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.

Rui Knopfli