RESERVA-SE
O DIREITO DE ADMISSÃO (A ADULTOS) por Luís Leal
Apercebo-me
nas redes sociais que, finalmente, em Portugal, o critério para a
adopção de crianças, na lei, é o amor e não a tradição
heterossexual duma união entre duas pessoas. Há que evoluir. Até
eu já pensei e opinei sobre este assunto de uma outra forma e hoje,
que sou pai de duas criaturas, acredito que o sumo interesse da
criança pode resumir-se ao afecto e ao respeito pela sua condição.
É
este respeito pela sua condição que me põe à frente do teclado a
pensar nestes parágrafos, que talvez se transformem em crónica, e
incluir, nessa condição infantil, o peso do futuro. Sim, eles são
o futuro apesar de, infelizmente, nesta batalha pela igualdade de
direitos e oportunidades, também sejam vítimas de uns quantos danos
colaterais.
O
meu filho mais velho vai festejar mais um aniversário e uma das
formas que a nossa família encontrou para que este dia não caia no
fado inevitável do consumismo, naquelas festas da moda em que
aniversariante e convidados têm de se obsequiar mutuamente (com tudo
aquilo que é bom vender), é tentar celebrar esse dia especial que
marca a sua chegada às nossas vidas de uma outra forma. Sei que não
escaparei a esse karma mas, enquanto eles ainda são
relativamente pequenos e fáceis de enganar sem que os excluam do seu
grupo escolar de amiguitos, vale a pena remar contra estes hábitos
que nos vão instituindo e que, a maioria, cegamente vai seguindo.
Mas,
mesmo assim, quando ele começou a sentir que o dia de aniversário
estava a chegar, querendo fazer convites personalizados para pôr na
mochila dos colegas da escola, reunimo-nos na melhor sala de reuniões
lá de casa, a casa de banho, e chegámos à conclusão alternativa
de que gostaria de fazer um boneco de neve e colocar-lhe um nariz de
cenoura. Na sua tenra idade nunca viu neve (eu também só vi, com
exceção de um dia surreal da minha infância em que nevou na
planície alentejana, já era um jovem adulto). Por esse motivo
decidimos organizar um passeio à neve.
A
minha mulher é um génio da logística excursionista, de sandocha na
mochila e alojamentos excêntricos e baratos. Domina a economia
doméstica, dentro e fora de casa, e eu assumo-me humildemente como
um amador a seu lado. Agarrada ao computador, a surfar por
essa net fora, encontrou uma residencial, ou turismo rural,
não me recordo bem (porque não quero recordar-me), que parecia
bastante em conta. Chamou-me e clicámos em voz alta nos comentários
e critérios dessa unidade hoteleira. O nosso interesse caiu a pique
(no meu caso foi mesmo directo para o caixote onde ponho as coisas
que considero descartáveis) quando lemos: “Não se admitem
crianças”.
Não
tenho nada contra o direito de admissão nem sou contra a propriedade
privada, notem bem! No entanto, não consigo evitar que me venham à
cabeça cafés e outros negócios que utilizam imagens de sapos
vigilantes para evitar a entrada de clientes de certas etnias ou,
pegando noutro exemplo, vem-me à cabeça a imagem de Rosa Parks, que
se insurgiu contra a separação dos passageiros negros dos brancos
dentro dos autocarros da cidade onde vivia, Montgomery, insistindo em
sentar-se num lugar que a levaria mais tarde a ficar na história dos
direitos humanos.
Desculpem,
já estou a viajar demasiado nos meus pensamentos. Dos batráquios do
café ao autocarro do Alabama sigo agora para um avião da TAP que o
ano passado me levou a Munique. Nessa viagem, uma mãe hercúlea
trazia, de escala em escala, os seus três filhos consigo, o mais
pequeno deles de colo e evidentemente saturado. Olhámos para aquela
mãe com a empatia de saber o que é voar com um bebé a quem já não
bastavam as necessárias dores de dentes a crescer, tendo ainda de
aguentar a pressão de várias horas de voo.
Sei
bem o que são crianças desregradas no caos educativo paternal e
garanto-vos que esse não era o caso. As pobres crianças apenas se
queriam libertar com sorrisos e abraços da mãe e uns quantos
olhares metediços para trás dos mexidos assentos. Troquei uns
quantos olhares e sorrisos com um deles, um menino de dois ou três
anos, que roía e me oferecia a sua chucha.
O
ser humano tem tanta informação virtual à sua disposição que
está a perder a capacidade de compreensão da realidade empírica.
Não deve ser possível “googlar” estas coisas para entender a
dureza que é viajar horas a fio nestas circunstâncias.
Curiosamente,
foi uma Senhora de idade madura e experiente, com uma vistosa
permanente no cabelo, quem viria a queixar-se insistentemente à
simpática hospedeira do desassossego que lhe provocavam as crianças
e os seus brinquedos, a ponto da mãe das mesmas abdicar do seu lugar
para evitar uma discussão.
Obviamente
que todos temos direito ao descanso, temos direito a não sermos
incomodados, quer por miúdos, quer por graúdos (se é que uma
criança a brincar para se manter entretida pode considerar-se um
incómodo!). Enfim, a Senhora da permanente, indiferente àquelas
crianças, estava no seu pleno direito. Mas apenas isso, no seu
direito.
Felizmente,
a maioria dos passageiros ficou ao lado daquela mãe e ajustámo-nos
sem qualquer problema, com alguns “gugu-dadás” pelo meio, às
suas circunstâncias e à nova ordem dos assentos dentro da aeronave.
No
entanto eu, se já era um convicto defensor dos direitos das pessoas
(tento ser de todos os seres vivos), reservo-me o direito de não
gostar de pessoas que não gostam de crianças, tal como acredito que
quem não gosta de crianças tem direito a não gostar desses enfants
terribles.
Não
sei se o meu filho colocará ou não um narizito de cenoura a um
boneco de neve este ano, nem sei tão pouco se verá neve este ano.
Mas sei que não iremos a locais que não admitem crianças porque
não nos deixam lá entrar! Não iremos a esses locais, no limbo
conveniente da legalidade, que confundem o direito de admissão com a
conduta adulta, esse reflexo evidente no elo mais fraco que são os
seus filhos ou naqueles cujo futuro depende do seu exemplo de
adultos.
Usando
terminologia económica que se tende a usar para justificar tudo no
nosso mundo, há “nichos de mercado” para estes direitos de
admissão. Tenho um amigo que argumenta que, se queremos um ambiente
que proporcione um aumento da demografia, num restaurante ou num
hotel, não admitir crianças ajuda a criar esse mood.
Tem razão, a minha libido prefere o glamour de
um restaurante francês mas nos entretantos vai-se contentando com
uma pizzaria com vista para uma piscina de bolas
coloridas…
É
possível que estes nichos sejam frequentados pelas sensibilidades
que merecem. Talvez as crianças que lá não foram admitidas no
presente, possam num futuro próximo passar à porta e ver um cartaz
onde está escrita a palavra: “trespassa-se”.
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