Eduardo Galeano teve na mulher uma
coluna vertebral da sua obra, defendendo, e reivindicando no feminino, a
dignidade sempre precária do ser humano.
O livro “Mujeres”, no qual se
insere o texto original aqui traduzido (até então apenas disponível em
português do Brasil), é uma compilação de textos do autor uruguaio e uma
homenagem à mulher por celebrar a vida.
Como também acontece […] Eu roubo e roubam-me (Eduardo Galeano)
Como também acontece com os
índios e os negros, a mulher é inferior mas ameaça. «Vale mais a maldade de
homem que a bondade da mulher», advertia o Eclesiástico (42, 12). E bem sabia
Ulisses que devia ter cuidado com os cantos das sereias, pois cativam e levam os
homens à perdição. Não há tradição popular que não perpetue o desprestígio da
mulher ou que não a denuncie como perigo. Ensinam os provérbios, transmitidos
por herança, que a mulher e a mentira nasceram no mesmo dia, que a palavra de
uma mulher não vale um alfinete, e, na mitologia camponesa latino-americana, são
quase sempre fantasmas de mulheres, à procura de vingança, as temíveis almas
penadas, as “luzes más”, que pela noite dentro assombram quem por ali passa. Na
vigília e no sonho, delata-se o pânico masculino perante a possível invasão
feminina dos vedados territórios do prazer e do poder. E assim foi desde os
séculos dos séculos.
Por algum motivo foram as
mulheres as vítimas das caças às bruxas, e não só nos tempos da Inquisição.
Possuídas pelo demónio: espasmos e uivos, talvez orgasmos, e para cúmulo do
escândalo, orgasmos múltiplos. Só pela possessão de Satanás se podia explicar
tanto fogo proibido, que através do fogo era castigado. Mandava Deus queimar
vivas as pecadoras que ardiam. A inveja e o pânico perante o prazer feminino
não tinham nada de novo. Um dos mitos mais antigos e universais, comum a muitas
culturas de muitas épocas e de diversos lugares, é o mito da vulva dentada, o
sexo da fêmea como boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha que se
alimenta de carne de machos. E, neste mundo de hoje, neste fim de século, há
cento e vinte milhões de mulheres com o clitóris mutilado.
Não há mulher que não seja
suspeita de má conduta. Segundo os boleros, são todas umas ingratas; segundo os
tangos, são todas umas putas (menos a mamã). Nos países do sul do mundo, uma em
cada três mulheres casadas leva sovas como parte da rotina conjugal, castigo do
que fez ou do que podia fazer:
- Estamos adormecidas – diz uma
operária do bairro Casavalle, de Montevideo -. Algum príncipe te beija e
adormeces. Quando acordas, o príncipe dá-te porrada.
E outra:
- Eu tenho medo da minha mãe e a
minha mãe teve medo da minha avó.
Confirmações do direito de
propriedade: o macho proprietário comprova a murro o seu direito de propriedade
sobre a fêmea, como o macho e a fêmea comprova a murro o seu direito de
propriedade sobre os filhos.
E as violações? Não são por acaso
rituais que através da violência celebram esse direito? O violador não procura,
nem encontra, prazer: necessita submeter. A violação grava a fogo uma marca de
propriedade na anca da vítima e é a expressão mais brutal do carácter fálico do
poder, desde sempre expressado pela flecha, a espada, o fuzil, o canhão, o
míssil e outras ereções. Nos Estados Unidos, viola-se uma mulher cada seis
minutos. Diz uma mulher mexicana:
- Não há diferença entre ser
violada e ser atropelada por um camião, salvo que depois os homens te perguntam
se gostaste.
As estatísticas apenas registam
as violações denunciadas que, na América Latina, são sempre muito menos do que
as violações ocorridas. Na sua maioria, as violadas calam-se por medo. Muitas
meninas, violadas nas suas casas, vão parar à rua. Compõem a rua, corpos
baratos, e algumas encontram, tal como os meninos de rua, a sua casa no
asfalto. Diz Lélia, catorze anos, criada como Deus quis nas ruas do Rio de
Janeiro:
- Todos roubam. Eu roubo e
roubam-me.
(Trad. Luis Leal)
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