Ao pensar em raposas, lembra-se
sempre de duas: a Salta-Pocinhas do Aquilino e «el zorrito» do Jonathan. A
primeira, astuta e matreira, é essa brilhante criação da literatura portuguesa.
A segunda, uma cria, um raposinho alimentado à mão por um antigo aluno (de quem
guarda gratas recordações) que costumava mostrar-lhe fotos de como ia crescendo
a sua adopção selvagem.
Apesar de viver e exercer a sua profissão
numa cidade com mais de cem mil habitantes, mantém um pé no campo e, há poucos
meses, com algum material reciclado - paletes, chapas, restos de madeiras,
ferragens, etc. - construiu um
galinheiro. Fê-lo pouco a pouco, ao fim-de-semana, terminando-o para o manter vazio
até ontem, dia em que, de passagem por Portalegre, a sua mulher e os miúdos
decidiram trazer duas galinhas poedeiras e alojá-las nos aposentos ainda por
estrear. Durante o caminho, falou-se de quanto podia durar uma galinha - mais
de uma década, diz quem sabe - e os pequenos até as baptizaram de Pepi e Dory.
Chegados ao terreno, acamada a
palha, posto o bebedor e o comedor cheio de milho, os galináceos lá saíram da
caixa de papelão para a construção de arquitectura e mão-de-obra do próprio. Fechados
os ferrolhos, a família contemplou os animais a ambientarem-se à nova
residência, mais digna do que a loja de animais, em pouco diferente dum
aviário. Para pagar o alojamento, apenas se esperavam uns ovinhos postos em
ambiente bucólico.
Não é que sentisse qualquer tipo de
orgulho. Se o sentiu, foi há meses quando, com restos de sucata, construiu esse
abrigo bastante decente para dois ou três animais, munido unicamente de algum
engenho e uma aparafusadora barata. Ali ficaram, a Pepi e a Dory, as galinhas
dos seus filhos, e voltaram para a urbe, iniciando uma nova rotina de guardar
os resíduos orgânicos. Num só dia, um saco cheio com restos de cascas de
cenoura, batatas, alface, tomate, pão duro e mais algumas coisas a sobrarem,
felizmente, da sua alimentação.
Passadas vinte e quatro horas, de
volta à quintarola para tratarem de tudo o que ali têm e está vivo em comunhão
com a terra e com os seus sonhos de verem aquela paisagem ainda com mais vida,
nem sequer tinham parado o carro, já se sabia que algo tinha acontecido. Não
foram melancias comidas pelas lebres, não foram árvores tombadas pelo vento,
nem um tubo de rega fora do sítio ou roído pelo cão. As centenas de penas
espalhadas pelo chão anteviam a rede arrancada dos agrafos, e do reforço
aparafusado na madeira, até chegar ao vazio do galinheiro a denunciar a chacina
do instinto animal, a lembrar que o equilíbrio da natureza se sobrepõe à edificação
humana, à sua arquitectura precária, à sua tendência à domesticação.
Ali acostumaram-se ao ciclo da vida,
às árvores que o sol seca e à sede que pouca água ainda vai mitigando. Já ali
viram o passar das estações, já ali viram um antes, num olival idoso e
enfermiço, e um depois, em jovens plantas de amendoeira. Talvez por isso, os
seus rebentos tenham aceitado naturalmente o terrível fim das suas galinhas, simples
presas dum predador alegórico de inteligência e astúcia. Contudo, ele culpou-se
por não prever as mandíbulas de uma raposa para além da sua rede. Deveria ter
reforçado mais ainda a estrutura da capoeira. Recriminou-se por não ter sabido proteger
aquelas duas vidas a seu cargo.
O dia foi quente, mas a noite
refrescou no campo em ventosa que foi. Ele, ali a pernoitar, acorda agitado num
pesadelo sem carnificinas duma qualquer Salta-Pocinhas raiana. Desperta à mercê
duma agonia subconsciente, daquelas que não o deixam voltar a pregar olho.
Lá fora, a madrugada. Ouvem-se os
pássaros no prelúdio da manhã. O sol ainda é tímido para os quase quarenta graus
que a meteorologia lhe atribui. Pensa em voltar à construção do galinheiro, em
que a sua teimosia será uma fortaleza inexpugnável para a matreirice
pilha-galinhas. Porém, deveras quem é que quer proteger?
As crianças dormem tranquilas, a
sua mulher também. Ele é o único a escrever insónias, a acordar sobressaltado e
a engendrar guaridas, refúgios inúteis. Lá fora, há penas por todo o lado. O
vento vai tardar em levá-las.
Foto: "De galinhas, raposas e homens..." de Luis Leal |
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