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Nota: A seguinte crónica de viagem foi redigida em 2017 para a revista "Mais Alentejo" e nunca foi publicada. Havia várias fotografias para a ilustrarem, porém, não as encontro no arquivo. Fica este relato para quem o quiser ler.
Em Palermo não sejas palerma! Aproveita! (
A rota foi: Madrid, Roma,
Palermo. Também se pode ir desde Lisboa, fazer escala na cidade da “Dolce Vita”
e daí voar até à Sicília. Recém-aterrado no aeroporto de Palermo (confesso não
ter levado os trabalhos de casa feitos, não pesquisei nada sobre a ilha que ia
visitar, nem sobre a cidade onde me iria hospedar), demorei meia-hora a chegar
ao centro da cidade, onde um hotel muito bem situado, sem A/C e no qual tinha
de dormir com repelente para mosquitos, me esperava (a minha memória não reteve
nome e, para retribuir a comichão causada, nem me vou esforçar por me lembrar).
Estava em Palermo graças a
um projecto no qual participo há dois anos sobre “Desenvolvimento Sustentável”
e isso possibilitou-me visitar a cidade e algumas zonas da Sicília,
principalmente a parte oeste, pela mão de amigos orgulhosamente sicilianos. No
entanto, qualquer visitante pode enriquecer a sua estadia simplesmente com a
sua própria curiosidade, contudo, já que tive este privilégio e a possibilidade
de partilhá-lo na “Mais Alentejo”, pode ser que a minha experiência desperte o
interesse do caríssimo leitor.
Esta ilha mediterrânea é
uma região autónoma italiana com, mais ou menos, 25000 km², cuja capital,
Palermo, se assume como a quinta maior cidade italiana, não chegando a um
milhão de habitantes. Porém, tal como a UNESCO a inscreveu como Património da
Humanidade, Palermo continua a “ser um exemplo de sincretismo sociocultural
entre as culturas Ocidental, Islâmica e Bizantina na ilha que gerou novos
conceitos de espaço, estrutura e decoração. Também testemunha a coexistência
frutífera de pessoas de diferentes origens e religiões”.
Para muitos, a Sicília
remete-nos para o imaginário dos filmes do Francis Ford Coppola, para a pobreza
emigrante de famílias exportadas para o Novo Mundo. Mas a possibilidade de ali
estar, em pleno Mediterrâneo, enquanto provava iguarias locais (eis uma lista rápida:
«aranchina, panelle, crocché, calzone fritto, panini con milza”,
finalizando com “brioche con gelato”) e falava com gente da terra, uma terra
tão latina como as minhas, tornou-se numa experiência inolvidável.
Tal como o final de tarde
na companhia de Carmen e Antonio, antes de contemplarmos a paisagem
palermitana, a cantarem Fabrizio de André, enquanto no ar vigorava a fragância
a “zagara”, nome italiano que se dá à flor de laranjeira. Uma avenida com este
cheiro em plena Primavera é um convite a um passeio a pé e à boa conversa, como
a que tive com o poeta Antonio Maggio, ao explicar-me que ser “Di Maggio” (de
Maio) é um privilégio formal herdado da 1ª Guerra Mundial, quando alguns homens
ganharam este apelido graças à coragem e à bravura em combate.
Quando o vento sopra cor
de terra vem de África e chama-se “Scirocco”. Alguns dias, enquanto lá estive,
soprou forte e deixou rasto na minha pele e cabelos. Foi o momento em que o Mediterrâneo
tentou ser mais forte que a violência atlântica que me corre nas veias. Apesar
de não lhe ser indiferente, não foi possível esta intrusão marítima. Como é
sabido, a grande diferença entre mares e oceanos nada tem a ver com dimensão de
ambos. Sim com marés. Num mar, a maré quase não se nota, porém num oceano pode
atingir níveis de autêntica devastação ou afastamento.
Ser o timoneiro dum
veleiro por momentos, durante um passeio pela costa de Palermo, foi o exemplo
irónico dum alentejano navegador que, quase em saber nadar, parte em conquista
do mar. O exemplo pouco se adapta à minha pessoa, pois sei nadar relativamente
bem, e não sou navegador como muitos dos meus antepassados que se foram embora,
partiram e mantiveram a esperança de correr o mundo inteiro. Navegar neste mar, foi uma ocasião repleta de emoções. Primeiro, a de
ser o homem do leme, esse que nasce do fundo do ser, e, depois, à volta, quando
nos apercebemos de não sermos capazes de chegar ao destino, o reflexo da
tristeza, a fraternidade de saber do sofrimento do outro e ver, na nossa
incapacidade de resgatar os náufragos, o rosto dos nossos seres queridos. Assim
foi o meu Mediterrâneo, o entusiasmo inicial afogado num cemitério aquático. A
surdez do grito rebentou-me os tímpanos...
Mudando de assunto, há um
ritmo italiano e um ritmo siciliano. É a base do nosso ritmo latino sem as
especificidades ibéricas, mas, mesmo assim, não sendo eu compassado pelos
ritmos do Norte, tive dificuldade em adaptar-me aos vinte minutos transformados
em duas horas ou à frenética condução automóvel alérgica ao cinto de segurança
e indiferente a passadeiras. Cada povo tem o seu ritmo
vital e o da Sicília é originalíssimo! Foram tantos os momentos em que me
lembrei das latitudes do meu Alentejo. O azeite, o vinho, o pão, o bem-receber
personificado no abraço do Salvatore que me explicou o porquê de cada nome,
cada prato, cada sabor.
Tal como na nossa região,
há um léxico de padrinhos e afilhados, porém, esta herança de envilecimento
familiar, não é coisa nossa. Falar sobre a máfia, a “Cosa Nostra”, negada pelos
habitantes durante tanto tempo, já é possível. Explicou-mo uma simpática guia
turística, que, com coragem siciliana, assumiu como a sombra da máfia eclipsa
muita da luz desta região. Apesar de muito ter mudado desde a morte de Falcone
(o juiz principal na conhecida “Operação Mãos Limpas”, assassinado em 1992,
juntamente com sua esposa e os seus guarda-costas), o espectro da máfia paira
sobre esta sociedade. Há mais coragem por parte dos sicilianos graças a uns
quantos mártires que ajudaram a assumir a existência de grupos criminosos
organizados. Assumir é sempre o primeiro passo para resolver o que quer que
seja. Admiro profundamente a coragem de quem se assume. Este povo fê-lo após anos
de negação. O problema ainda existe, mas esta gente já se ri dele. Basta vermos
a quantidade de merchandising e souvenirs a ridicularizarem todos aqueles que
se querem ser os novos Vitos Corleones!
Tenho dificuldade em
seguir e dar indicações turísticas. É verdade. Sou um bocado anárquico a fazer
listas de monumentos para visitar, principalmente quando a minha atenção se
dispersa com o prosaico do dia-a-dia dos habitantes dos locais que visito, porém
vou fazer o esforço. O meu caríssimo leitor poderá ter interesse em conhecer,
em Palermo e imediações, o complexo monumental “Árabe-Normando de Palermo e as
Catedrais de Cefalu e Monreale”, elevado, em 2015, a Património Mundial,
incluindo locais interessantíssimos como o Palácio Real e a Capela Palatina, a
Catedral de Palermo, a Igreja de S. João dos Ermitas, a Igreja de Santa Maria
do Almirante, conhecida como “Martorana”, a Igreja de S. Cataldo, o Palácio de Zisa
e a Ponte do Almirante, a Catedral e Claustro de Cefalú ou a Catedral e
Claustro de Monreale.
Como já tive oportunidade
de mencionar, apenas conheci parte da zona oeste da ilha, a chamada “Sicilia
Greca”. As restantes, “Sicilia Jonica”, “Sicilia Barroca” e “Sicilia Spagnola”,
ficarão para quando a vida mo permitir. Contudo, por onde andei há muitíssimos
locais a visitar e a desfrutar. Porque não um mergulho em Capo Galo? Em Isola
delle Femmine? A fauna e a flora subaquática podem ser exploradas com qualquer
empresa de mergulho certificada. O snorkeling também pode ser uma opção para
quem não se sentir cómodo a maiores profundidades. Caso o mergulho e o mar não
estejam nos planos, pode dar um passeio pela reserva natural de Trapani e
Paceco. Aí pode agarrar nos binóculos e observar várias aves, com especial
destaque para os flamingos, conhecer a flora autóctone, como o “Cynmorium
coccineum”, cujo nome comum desconheço em português, usado para tingir
paramentos papais. Ainda nesta reserva natural, preste atenção aos lagos
salgados de Trapani e às suas salinas históricas, celebrizadas pelo geógrafo
árabe Edrisi.
Ainda na parte grega,
podemos dar um salto à cidade de Agrigento, cujos arredores viram nascer o Nobel
Pirandello, e visitar o Vale dos Templos, onde se recomenda a visita ao Templo
de Zeus Olímpico, o maior templo da ordem dórica jamais construído na área de
influência da Grécia Antiga, porém não chegou a ser concluído. Tal como o nosso
Mosteiro da Batalha e as suas Capelas Imperfeitas, ambos celebram uma batalha,
neste caso a de Hímera, e ambos estão por terminar. A minha divagação não lhe
permite nada mais em comum.
Como se diz na nossa
terra, “o tempo passa a correr” e já estava a fazer a rota inversa: Palermo,
Roma, Madrid. Sentado no avião que faria escala em Roma, escrevi uma nota
pessoal no meu diário. Parece-me a adequada para me despedir, com estima, do
leitor cuja paciência o trouxe até estas linhas finais:
“Apesar do cansaço
palermitano, foi um privilégio vivê-lo no meio da sua gente. Voo sobre o mar da
nossa civilização em direcção às penínsulas. Primeiro a bota que chutar-me-á
para a jangada de pedra do José Saramago, essa península atracada, por uma
corda bastante velha, à Europa.”.
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