quinta-feira, fevereiro 27, 2020

Crónica: "Manel" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº152, p.84)


Nunca por aqui escrevi sobre a minha profissão. Não o fiz porque gente bastante mais interessante e idónea do que eu o faz e fá-lo bastante bem, porém, caso não saibam como ganho a vida, é fácil adivinhar: sou professor. “Mais um” dirão (e quem sou eu para vos contradizer) que gostaria de viver para a escrita e, afinal, é a docência a pagar contas e a permitir devaneios literários.
Não gosto de falar demasiado sobre o que faço. Primeiro, porque, apesar de ser aqui ao lado, é outro sistema educativo e estou bastante farto de comparações. Ou é melhor, ou se ganha mais, ou é pior... Ser professor em qualquer parte do mundo, na essência, é o mesmo. Lá como o sistema, a sociedade, nos trata é que pode diferir.
Segundo, abomino todo o discurso de vida centrado no trabalho. Curioso é este grémio ter uma elevada percentagem de gente constantemente a justificar vocações, enunciando o tempo que dedica aos seus alunos, à sua escola, quem sabe se para esconder alguma ou outra carência. Nego-me a fazer parte destas contas. Vivi intensamente a minha etapa de aluno e, no final da minha labuta, continuo a querer ir para casa, para os meus, para o que quer que seja (longe de preferência), algo que jamais invalidará competência e dedicação.
Poderia enveredar pelo discurso do “Prof. do Ano”, esse “setôr fixe” cheio de motivação para mudar o mundo com os seus alunos no centro do universo, ou sucumbir ao cansaço de tentar cada semana (sem contar com 3, perdão, 4 meses de férias, pois há que contar Natal, Carnaval e Páscoa!) que te oiçam, que aprendam, no meio de parafernálias informáticas mais credíveis do que tu e, de certeza, insensíveis às faltas de educação, de respeito... Poderia pôr-me para aqui a escrever sobre os meus feitos e fracassos profissionais e não ganharia mais do que esse desinteresse e invisibilidade a que muitos estamos votados. Na encruzilhada do entretenimento e do cansaço, apenas sei por que motivo enveredei por esta profissão.   
Quis ser uma catrefada de coisas: médico, veterinário, polícia, aviador, militar, arqueólogo e até Presidente da República. Em Espanha já sei que não me safo, mas em Portugal ia ser um bom rival do Marcelo em abraços e lágrimas. Contudo, não sou gajo de grandezas, nem para o povo, nem para mim. Fiquei-me por professor (de português, ainda por cima!) como o meu professor Manel.
Muitos conhecem o Manel. Não porque Évora seja pequena, sim porque a sua grandeza o precede. Se existe essa coisa do destino, o meu selou-se no dia em que me deu a primeira aula. Escreveu no quadro “Lua Nova/Rua Torta/Tua Porta”, versos da Ana Hatherly. Não sei se os entendi, mas os meus 16 anos gostaram e esse é o primeiro passo para se entrar na poesia.
As suas aulas não eram para clubes de poetas mortos, eram para gente viva, com esperança num futuro conquistado em Abril e sem medo de criar movimentos ambientalistas tão politicamente incorrectos quanto ridículos, como o nosso “Raiva Verde”, com o seu pasquim “Oikos Logos”.
O Manel inspirava-me. Com ele, e graças a ele, escrevi os meus primeiros artigos, atrevi-me a um primeiro acto dum “Tirésias Superstar” e li, em público, o meu primeiro poema. E era tão forreta! Só tive dois 18 e foi prestes a entrar para a universidade. Sempre lho disse, tratando-o por tu, algo impensável no meio escolar português. O sovina estimulava-me a dar o melhor de mim. Hoje, basta papás ou mamãs queixarem-se e sobem-se notas. Se a coisa estiver difícil, devidamente amparada em justos critérios, há-de vir alguém da inspecção educativa e fá-lo pelo docente.
E o Manel vinha para a escola de bicicleta! Marimbando-se se era coisa de pelintra, de pobre. Fazia-o (e faz!) naturalmente por este ser o melhor e mais belo meio de transporte do mundo!
Gosto tanto do Manuel Piçarra. Foi um privilégio ser seu aluno. Está na moda dar-se prémios aos professores. Até se pode justificar como um reforço positivo, mas não me evita a tristeza de só lhe ver lógica capitalista. Um verdadeiro professor não quer prémios. Com a sua dignidade respeitada, dar aulas, por si só, é uma recompensa. Então se for a gente que quer aprender, é laureado com o Nobel todos os dias!
O nosso Manel





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