sexta-feira, junho 25, 2021

Crónica: "Palavrões e 'Palabrotas'" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº156, p.46)

Palavrões e “Palabrotas”


Tenho uma relação muito próxima com os submundos linguísticos e, com frequência, adentro-me na marginalidade de alguns registos um tanto ou quanto proscritos. Apesar do eco materno da proibição (e bem!), faço-o quase sempre para paliar alguma dor ou libertar alguma frustração nessa perspectiva infantil de um puto para quem ser homem era, entre outras coisas, dizer um palavrão em público e não ser repreendido.

A realidade é que, desde crianças, lidamos e dispomos de um repertório abundante de palavrões. Alguns ainda continuam em força, outros esbateram-se e uns quantos foram introduzidos à medida que fomos crescendo. Lembro-me, salvo algum alivio, suave e pontual, de o meu pai não dizer palavrões em casa, dando o exemplo que era ditado e corroborado pela minha mãe. Porém, numa das minhas pequenas memórias acompanho o meu pai no seu local de trabalho, onde ele não fala como falava em casa. Tem mais ênfase, mais liberdade de registos e, ali, não é só o meu pai. É um homem, um trabalhador honesto e respeitado num ambiente proletário, aquele em que maioritariamente, e com muita honra, me criei, e onde, pela primeira vez, encaro a multiplicidade de papéis que desempenhamos ao longo da vida.

A experiência tem-me mostrado o quão erróneo é associar, em exclusiva, o calão a ambientes sociais baixos. Um registo linguístico cuidado, e até mesmo corrente (esse associado à norma), exige alguma formalidade e padrões de educação inerentes a uma determinada comunidade de falantes, algo que acontece no registo familiar, coloquial, típico de relações sociais mais próximas. Portanto, não é de estranhar um neurocirurgião, um político, ou um escritor de renome, falar entre amigos como a sociedade supõe que falaria um camionista. Em suma, recorrer ao palavrão não é apanágio de estratos sociais menos abonados, desfavorecidos ou marginalizados e só a falta de atenção não o descobre em ambientes e esferas sociais mais altas.

Que o meu estimado leitor não pense que estou a fazer uma apologia do calão, mas tenho a certeza de muitos palavrões me ajudarem a substituir pensamentos de difícil enunciação, a libertar e a controlar o meu lado iracundo, a pôr pontos nos “is”, a cimentar amizades e camaradagem, a defender-me, e, pelos vistos, a ser encarado como alguém honesto, de confiança, tal qual como vi o meu pai há mais de três décadas. E o mais irónico é que existem mesmo estudos científicos a atestarem os benefícios deste uso vernacular nas nossas existências.

Nunca imaginei ser contratado para dissertar sobre a marginalidade de algum vocabulário e expressões da língua portuguesa, várias vezes para ser franco, e tenho-o feito baseado em bibliografia rigorosa e em empirismo pessoal. Foi neste âmbito que enunciei uma tese (original, creio eu, pois até hoje não a encontrei em nenhum artigo) de defesa pessoal linguística. Isto é, como se aprende a esquivar ou bloquear uma agressão física, quem tem de se adentrar noutra cultura ou língua que desconhece em profundidade, a primeira coisa que pretende dominar é o lado proscrito da mesma, unicamente para se defender e, em última instância, sobreviver.

Apesar da minha familiaridade com o espanhol, quando rumei para o outro lado da fronteira, aprofundei o idioma nos seus “bajos fondos”, quis ter a certeza de não me insultarem sem me aperceber e, nessa busca de técnicas de “Krav Maga” de paleio, certifiquei-me do espanhol, tal como o português, ser um solo fértil, para “tacos y palabrotas”. 

Porém, o meu húmus luso deparou-se com uma das poucas diferenças que encontro neste substrato ibério onde afloram as nossas individualidades peninsulares. Cresci a ouvir e a dizer palavrões (acredito que a sabê-lo fazer no momento oportuno e no lugar adequado), mas, ao adquirir um discernimento de tantas “palabrotas”, descobri uma certa blasfémia espanhola, defecando em divindades, em mortos, em tudo! A língua portuguesa evacua para muitas coisas, mas parece-me não chegar a tanto. Qual é o motivo para este uso? Será o povo espanhol mais blasfemo do que o português? Mais escatológico? Sinceramente, não sei e não tenho particular interesse em saber. Apenas sei que muitos nem têm consciência para o que se estão a cagar... 

Ilustração de Malagón




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