terça-feira, junho 25, 2013

A Srª. da Saúde tinha um bairro

À Bernarda, por quem cheguei a ter bastante afecto.

A Srª. da Saúde tinha um bairro,
Onde nasci são mas com pés de barros.
Os primeiros passos de maio levavam-me, de mão dada com a minha mãe,
A um rosário de contas que não entendia (nem podia saldar com ninguém)
Que, para a minha azul retina, era rotina de velhas,
De negros vestidos entristecidos, que se abrigavam
Na capela de um fim de tarde demasiado alegre e primaveril.
De ao seu lado estar sentado, lembro-me pouco.

Recordo estar sentado ao redor de uma virgem de manto azul cerâmica,
No lado esquerdo do altar, eu, a um ignoto Deus, mas a uma mãe imaculada conhecida, pois era oriunda de Fátima, concelho de Ourém, distrito de Santarém, fabricada a partir de 1917.

Eu, indecentemente inocente, com um castiçal dourado, tipo taça, brilhante e de alva azulada, ali estava.
(Essa alva foi das minhas primeiras sensações de posse e de pertença. Alva infantil, alva única para a minha diminuta talha).
Ali estava,
Sentado, louvando sem saber,
Polegares e indicadores suados,
Com fé apertando contas às dezenas.

Por entre sinais da cruz,
Credos,
Contas grandes à conta do Pai-Nosso,
Já as contas pequenas, machistas, à conta da Ave-maria,
Glórias, essas, apenas de dez em dez,
E um final para um “God save the Queen”.

Ignoto ego fascinado com um Jesus de férias por um mês
(personagem filial secundária).
Ecce Homo,
Personagem secundária do mês de maio,
A quem minha mãe,
Todas as noites,
Me ensinava a rezar.
Esse Homem que,
De certeza, conhecia o meu anjo da guarda,
Essa companhia santa, que minha alma
Guardava alva
De noite e de dia.

A Srª. da Saúde tinha uma capelinha,
Um poço entre vinhas,
Onde a Bernarda Beata Alba engomava alvas e purificava com lixivia a higiene espiritual (e postural) de quem por ali vivia.
E num dia de maio, do calendário da personagem matriarcal principal
(da freguesia de Fátima, concelho de Ourém, distrito de Santarém)
A minha alva não saiu do armário,
Enclausurada ficou na sacristia.
A Beata Bernarda Alba, assim o queria.

A virgem (que tem um boneco de acção que muda de cor com a humidade relativa do ar) não intercedia.
Nesse dia, de maio, moço, de céu alvo azulado choveu no regaço da minha mãe.
Ao longe, o simpático Jesus, a quem eu rezava, não conseguia pôr nenhuma cunha para que pudesse voltar para o séquito infantil de alvas diminutas, por sujar, de sua mãe.

O armário da sacristia da Srª. da Saúde guarda para sempre a pureza do meu pretérito imperfeito.
A Bernarda Alba Beata trancou à chave angustias, madalenas, martírios, amélias e adelas…
Trancou à chave o catolicismo para as obras de um deus inventado para que acreditemos desde crianças.

A crença de alva, acólita,
Disfarçada pelo lado gregário, obrigado e escuta,
Esteve no altar da minha adolescência.
(Quase sempre mentirosa, nunca pecaminosa,
Como eu mentia a mim mesmo e os outros a mim e aos outros).

A alva ficou fechada no armário da sacristia,
No regaço da minha mãe verdadeira,
E não impingida pelo mês em que nasci,
Chovia.
Desde esse dia,
Não há estações intermédias,
E Deus, pela mão de Bernarda Beata Alba,
Cortou as asas
Ao anjo que em mim havia.

 20/VI/2013
(Após uma conversa que me trouxe de volta ao bairro)

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