terça-feira, março 29, 2016

Sou neto de um analfabeto

Sou neto de um analfabeto. Sou filho de pais pouco letrados. Talvez por estes motivos a leitura se impôs como um escape à minha condição filial, à evasão de uma adolescência numa cidade do interior português, à minha ânsia de encontrar respostas para as perguntas às quais constantemente me inquiro. 

Apesar de tantas vezes ter pensado e valorizado a sorte de não assinar discriminado com o indicador ou o polegar, nunca tinha assistido à mais pura liberdade de juntar sílabas para entender e grafar o pensamento. 

Vejo isso no meu filho. Vejo isso na vontade que tem de aprender a ler para conhecer mais e entender mais o que o rodeia. 

Para tanto conhecimento de academia, por vezes um pouco de nariz empinado, estes bicos dos pés curiosos a espreitarem o mundo, a investigarem apenas com o empirismo sem vícios, têm tanto para nos ensinar e não o podemos encontrar em nenhum artigo científico. 

Eu fico fascinado. Aproveito e, sem que ele note, um dia dir-lhe-ei, continuo a ser o mesmo menino neto de analfabetos. A única diferença entre nós é que junto sílabas e formo palavras com manias de adulto. Ele é um texto livre da pontuação que o tempo me impôs. Mas o tempo também me humildou o suficiente para nunca esquecer que as raízes fortes não necessitam de letras. Necessitam de amor, mesmo que esse amor tenha de assinar com o dedo húmido de tinta numa esponja administrativa selar-se-á para sempre numa infância feliz, sem letras, sem vergonha do seu passado iletrado.

segunda-feira, março 28, 2016

Luz de presença

O meu filho mais velho está a participar numa atividade do seu colégio chamada "Famílias Leitoras"  na qual, para receber um certificado de leitor, tem de cumprir os requisitos de várias leituras livres durante os dias da semana. As suas recentes cinco primavera não lhe permitem ainda ler sílabas sozinho (está no bom caminho, não graças a mim ou à sua mãe,  mas graças à Gracia, a sua professora da atividade de leitura).
Acabei de lhe ler um capítulo do "Comboio das Palavras". Dobrámos a esquina da página com carinho e esperança de amanhã continuarmos. Ficou uma luz de presença no seu quarto que ilumina as suas noites e as noites irregulares do seu irmão mais novo (ainda a aprender a dormir à Stivill).
É a única coisa que lhes posso deixar. Uma luz de presença... (e a esperança).

Robert Doisneau: "Le vélo de Tati". Paris (1949)







(Black Picture)



sexta-feira, março 25, 2016

Bruce Wayne: "Twenty years in Gotham. How many good guys are left? How many stay that way?" (in "Batman vs Superman")

quarta-feira, março 23, 2016

Guerra Civil (Miguel Torga)



Já passou o Dia Mundial da Poesia, anteontem, mas venham agora estes versos de Miguel Torga e os anteriores de Vitorino Nemésio para o recordar



GUERRA CIVIL

É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço,
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.

Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga




A vida é tempo (Vitorino Nemésio)




A VIDA É TEMPO

Com alma, ideias, tempo, luta
Componho um homem, sou sujeito:
Penso-me livre numa gruta
Como pretérito imperfeito.

De era se faz o meu futuro,
Será será o meu passado
Como da hera se faz o muro
Mais que da pedra levantado.

Se horas a nada levam tudo,
Nada nasceu, tudo é que é,
Haja ou não haja Sartre e o mundo
Deus Tudo-Nada havido em fé.

Que ele é Deus mesmo no absoluto
Ser contestado, tão assente
Que se faz Deus na voz que escuto,
Mesmo que o negue, e me desmente.

Vitorino Nemésio

O Verbo e a Morte, Lisboa, Moraes Editora, 1959, p. 22


(Blogue Folha de Poesia)



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"Com os anos, reconhecemos a felicidade de ter raízes".  Jiro Taniguchi

terça-feira, março 22, 2016

Bélgica, Bruxelas (Sem olhos todos somos cegos e não há rei que nos valha)

Acordo com a notícia dum atentado (dois, apercebi-me à "posteriori") na capital do projeto europeu, Bruxelas.

O medo instalado no mundo já tem metástases por todo os continentes. Recebo uma mensagem de um dos meus melhores amigos, fora do bairro, como eu, desde um país no coração da Europa a dizer-me que ninguém lhe venderá esse medo,  que continuará a viajar e a dizer que o mundo não é tão maluco como os media nos fazem querer ver. Mas o mais importante é que há de continuar a dizer que 99.9% dos muçulmanos são gente de paz. 


Estou com ele, com todas as vitimas e com todos os decentes e justos. Nem todos os muçulmanos são extremistas, como estes bárbaros jihadistas, nem todos os americanos são idiotas como o Trump. 
O terror é querer levar, e vender ao ser humano, ao extremo, ao limite, onde há apenas a miséria das ideias fáceis e impera a lei de Talião. Sem olhos todos somos cegos e não há rei, com um olho, dois, vesgo ou com óculos, que nos valha.

A felicidade é voltares sempre que quiseres...

É dia do pai e todos os escaparates mencionam-o da forma mais visível possível. Não é a primeira vez que escrevo sobre efemérides forçadas no calendário e é mais do mesmo.
Curiosamente, este sábado dia do pai tem sido passado em solidão de folga da responsabilidade da paternidade. Estou num dia de chuva enfiado num centro comercial e escrevo ao lado de um cartaz em forma de guru que me diz "a felicidade está nestas ofertas".
Reconheço que hoje deixei a minha coragem a 250km de distância e não me atrevo a buscar os raios de sol sem guarda-chuva. Espero a consumir. A consumir-me tempo e ideias. Penso que o tempo que gastei a trabalhar, o salário auferido com o sal dos meus dias, vale a pena ser investido num filme infantil, num disco de heavy metal, numa novela gráfica e numa revista semanal. Sou induzido a acreditar que o que trago dentro do saco passará pelo filtro das minhas lentes miopes e dos meus ouvidos cicatrizados por otites de miúdo e me enriquecerá como enriquecem os proprietários destas grandes superficies que me desumanizam com a minha autorização por escrito.
Esse sou eu. Um pai só numa tarde de sábado. Um filho que preferia estar com o seu pai. Um neto ausente da morte lenta do seu avô.
Escrevo sentado num teclado dum telemóvel inteligente e suspeito do segurança a observar-me de costas desconfiadas.
Lá fora espreitam uns raios de sol. Tenho medo. Mas vou sair deste templo em que me ajoelho para pagar o dizimo do meu tempo. Na pior das hipóteses apanharei uma molha. A relação dum homem com a chuva traiçoeira é natural...  Qual será a minha natureza?
Saio da loja e o guru não me deixa ir embora sem a sua sabedoria.
- A felicidade é voltares sempre que quiseres!

Diogo Gerlach



Diogo Gerlach.




sexta-feira, março 18, 2016

Soy un renegado

Sou um renegado

Sou um renegado,
O santo cidadão da mentira,
Um manequim de estuque.

Sou a vossa mente inquieta,
E perturbada,
Sou da terra, a pedra.

Sou a ira do teu Deus feita carne,
Um redemoinho de obsessões obscuras
Estou maldito.

Sou a felicidade perdida
Nas profundezas de um pântano.

Sou o homem que anseia a guerra
Que se penitencia pelas montanhas,

Sou um passeio
Pelo corredor da morte,...


Alejandro Nuñez Viera
in "darkness", José Manuel Méndez

Entre as memórias de um chulo e uma Nobel

Nobel é um estatuto que muitos aspiram negando-o. Chulo é o que é de falso-amigo em português e espanhol. Memória é o que nos faz ser humanos... (foto do bom amigo - e grande gestor de imagem -Adolfo).

a caça

a
vítima
da
mentira
é
a
verdade
fodida
e
distorcida.

Naquele tempo éramos donos... (Emanuel Jorge Botelho)



Naquele tempo éramos donos
das palavras,
não pagávamos tributo ao dicionário.

Naquele tempo fazíamos dos actos
factos,
ignorávamos os agiotas da decência.

Éramos dragões vomitando fogo,
lava,
origem,
trigo e
irreverência.

Éramos libertinos, libertários,
vagabundos
sentados nas sarjetas da
inocência.

Naquele tempo éramos donos
naquele tempo éramos
naquele tempo...

Emanuel Jorge Botelho 


(lido no blogue da luz & da sombra)

quinta-feira, março 17, 2016

Na minha fome mando eu.

Muito se tem falado no dia de hoje duns quantos hooligans adeptos de um clube da liga holandesa e da humilhação a que submeteram os seus semelhantes na "Plaza del Sol". Não percebo porquê tanta indignação dos media, talvez porque o que se passa com os refugiados na Turquia e Grécia não abra telejornais junto com o mediatismo dos golos duma equipa qualquer.
Nunca esperei nada que melhorasse o mundo por parte destas tribos de bárbaros, muito menos quando assumem o seu estatuto acéfalo em massa sob o efeito de álcool e outros estupefacientes.
A falta de recursos, de igualdade e de oportunidades feita miséria, é já, de raíz, opressão e facilmente se lhe soma a humilhação pública.
Para quem não tem nada, dançar e fazer flexões, ser pontapeado, escarrado, etc. é algo sem importância para a sua condição. A miséria já está instalada para além do estômago e não é qualquer espírito que não sucumbe perante tal adversidade de circunstâncias.
Lembro-me de uma história que contava José Luis Sampedro sobre um jornaleiro andaluz cuja condição de miséria não suplantava a tenacidade de espírito ao enfrentar de estômago vazio a imposição do capataz com um digníssimo:
- Na minha fome mando eu!

quarta-feira, março 16, 2016

A apresentação do [33] vista pelo amigo José Kuski Vieira

A espontaneidade é a honestidade dos artistas. Sorte de quem merece a sua arte em forma de generosidade.

O mundo pequenino...

Educamos da forma que pensamos ser a mais honesta e adequada ao nossos valores, tentando que sejam de igualdade e generosidade. O mundo é tão pequenino que a única coisa que podemos fazer é deixá-lo crescer com alguma fé na bondade do ser humano. É difícil, mas eles merecem que continuemos a acreditar na Utopia, principalmente nesta Europa, velha e estéril, tão longe de se refugiar no humanismo da sua história.  

Encuentro mi originalidad en palabras usadas que se convierten en versos de segunda mano. La literatura siempre será reciclaje indiferente a colores y contenedores.

"Mantém sempre a tua cara ao sol e as sombras cairão para trás de ti." Whalt Whitman


terça-feira, março 15, 2016

Walt Whitman (Rubén Darío)

III
Walt Whitman

NO seu país de ferro vive o grande velho,
belo como um patriarca, sereno e santo.
Tem na ruga olímpica da sua glabela
algo que impera e vence com nobre encanto.

       A sua alma do infinito parece espelho;
são os seus cansados ombros dignos do manto;
e com a harpa lavrada de um carvalho contíguo
como um profeta novo canta o seu canto.

       Sacerdote, que alenta sopro divino
anuncia no futuro, tempo melhor.
Diz à águia: «Voa!; «Rema!», ao marinheiro,

       e «Trabalha!», ao robusto trabalhador.
Assim vai esse soberbo poeta pelo seu caminho
com seu soberbo rosto de imperador!

       [1890]

[Trad. Luis Leal]




segunda-feira, março 14, 2016

A UM POETA (Rubén Darío)

NADA mais triste que um titã que chora,
homem-montanha agrilhoado a um lírio,
que geme, forte, que pujante implora:
vítima própria no seu fatal martírio.
Hércules louco que aos pés de Onfália
a porra deixa e o lutar recusa,
herói que calça feminil sandália,
vate que esquece a vibrante musa.
Quem irritou os robustos leões,
fiando, escravo, com a frágil roca;
sem trabalho, sem estímulo, sem acções:
punhos de ferro e áspero pulso!
  Não é poeta para pisar tapetes
por onde triunfam femininas danças:
que vibre raios para ferir as sombras,
que escreva versos que pareçam lanças.
Relampejando a soberba estrofe,
o seu sulco deixe resplandecente lume,
e o pântano do escândalo e da troça
que não o veja a águia no seu cume.
Bravo soldado com o seu elmo de ouro
lance o dardo que queima e desgarra,
que invista rude como investe o touro,
que crave firme como o leão a garra.
Cante valente e ao cantar trabalhe;
que ofereça carvalhos se se julga bosque
que a sua ideia no mal irrompa e desbrave
como na selva virgem o bisonte.
Que o que diga a inspirada boca
soe no povo com palavra estranha;
ruído de ondulação a açoitar a rocha,
voz de caverna e sopro de montanha.
Deixe o Sansão da Dalila o regaço:
Dalila engana e corta os cabelos.
Não perca o forte o raio do seu braço
por ser escravo de uns olhos belos.

[Maio, 1890]

[Trad. Luis Leal]

sexta-feira, março 11, 2016

"Nada más triste que un titán que llora,
hombre-montaña encadenado a un lirio,
que gime, fuerte, que pujante implora:
víctima propia en su fatal martirio. (...)"
Rubén Dario (1890)

quinta-feira, março 10, 2016

Que Torga acompanhe Marcelo na sua mesa de cabeceira. Não encontrará melhor Conselheiro de Estado.

Em Portugal tomou posse um novo presidente da república. O que cessou funções esteve envolvido em tantas polémicas que faltar ao funeral do Nobel da literatura do seu país é um mal menor (e o autor finado talvez lhe esteja grato pela ausência).
O novo, no qual eu não votei, surpreende-me ao citar o mestre Miguel Torga no discurso inaugural. Citar é fácil. Faço-o com a frequência da ocasião e dos limites da minha memória. Remete-nos para a sabedoria, para erudição (tantas vezes fingida), algo que não se associa aos políticos deste presente. No entanto, fico contente por esta referência a quem tanto aprecio. Não me recordo do discurso de investidura de há cinco ou dez anos. De certeza que não ficou para a história. Para a minha não ficou. Da economia, dos mercados, esses substantivos insubstanciais tão oportunos das austeridades selectivas, deve ter ficado.
Que Miguel Torga acompanhe este presidente na sua mesa de cabeceira durante o seu mandato. Não encontrará melhor Conselheiro de Estado.
Perguntam-me que relação tenho com Deus? Todas. Menos colectiva e institucional.

quarta-feira, março 09, 2016

Alarme: Bicicletas! (por Eduardo Galeano)

- A bicicleta fez mais que nada e ninguém pela emancipação das mulheres no mundo – Dizia Susan Anthony.
E dizia a sua companheira de luta, Elizabeth Stanton:
- As mulheres viajamos, a pedalar, em direcção ao direito de voto.
Alguns médicos, como Philippe Tissie, advertiam que a bicicleta podia provocar aborto e esterelidade, e, outros colegas, asseguravam que este indecente instrumento induzia à depravação, porque dava prazer às mulheres que roçavam as suas partes íntimas contra o assento.
A verdade é que, por culpa da bicicleta, as mulheres deslocavam-se por sua conta, desertavam do lar e desfrutavam do perigoso gosto da liberdade. E, por culpa da bicicleta, o opressivo espartilho, que impedia de pedalar, saía do roupeiro e ia ao museu.

(Tradução: Luis Leal)

Espectáculo (Shila )






Ser ou fingir ser... Pessoa (in "Museu Ciência do Café")

terça-feira, março 08, 2016

Como também acontece […] Eu roubo e roubam-me (Eduardo Galeano)


Eduardo Galeano teve na mulher uma coluna vertebral da sua obra, defendendo, e reivindicando no feminino, a dignidade sempre precária do ser humano.
O livro “Mujeres”, no qual se insere o texto original aqui traduzido (até então apenas disponível em português do Brasil), é uma compilação de textos do autor uruguaio e uma homenagem à mulher por celebrar a vida.

Como também acontece […] Eu roubo e roubam-me (Eduardo Galeano)

Como também acontece com os índios e os negros, a mulher é inferior mas ameaça. «Vale mais a maldade de homem que a bondade da mulher», advertia o Eclesiástico (42, 12). E bem sabia Ulisses que devia ter cuidado com os cantos das sereias, pois cativam e levam os homens à perdição. Não há tradição popular que não perpetue o desprestígio da mulher ou que não a denuncie como perigo. Ensinam os provérbios, transmitidos por herança, que a mulher e a mentira nasceram no mesmo dia, que a palavra de uma mulher não vale um alfinete, e, na mitologia camponesa latino-americana, são quase sempre fantasmas de mulheres, à procura de vingança, as temíveis almas penadas, as “luzes más”, que pela noite dentro assombram quem por ali passa. Na vigília e no sonho, delata-se o pânico masculino perante a possível invasão feminina dos vedados territórios do prazer e do poder. E assim foi desde os séculos dos séculos.
Por algum motivo foram as mulheres as vítimas das caças às bruxas, e não só nos tempos da Inquisição. Possuídas pelo demónio: espasmos e uivos, talvez orgasmos, e para cúmulo do escândalo, orgasmos múltiplos. Só pela possessão de Satanás se podia explicar tanto fogo proibido, que através do fogo era castigado. Mandava Deus queimar vivas as pecadoras que ardiam. A inveja e o pânico perante o prazer feminino não tinham nada de novo. Um dos mitos mais antigos e universais, comum a muitas culturas de muitas épocas e de diversos lugares, é o mito da vulva dentada, o sexo da fêmea como boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha que se alimenta de carne de machos. E, neste mundo de hoje, neste fim de século, há cento e vinte milhões de mulheres com o clitóris mutilado.
Não há mulher que não seja suspeita de má conduta. Segundo os boleros, são todas umas ingratas; segundo os tangos, são todas umas putas (menos a mamã). Nos países do sul do mundo, uma em cada três mulheres casadas leva sovas como parte da rotina conjugal, castigo do que fez ou do que podia fazer:
- Estamos adormecidas – diz uma operária do bairro Casavalle, de Montevideo -. Algum príncipe te beija e adormeces. Quando acordas, o príncipe dá-te porrada.
E outra:
- Eu tenho medo da minha mãe e a minha mãe teve medo da minha avó.
Confirmações do direito de propriedade: o macho proprietário comprova a murro o seu direito de propriedade sobre a fêmea, como o macho e a fêmea comprova a murro o seu direito de propriedade sobre os filhos.
E as violações? Não são por acaso rituais que através da violência celebram esse direito? O violador não procura, nem encontra, prazer: necessita submeter. A violação grava a fogo uma marca de propriedade na anca da vítima e é a expressão mais brutal do carácter fálico do poder, desde sempre expressado pela flecha, a espada, o fuzil, o canhão, o míssil e outras ereções. Nos Estados Unidos, viola-se uma mulher cada seis minutos. Diz uma mulher mexicana:
- Não há diferença entre ser violada e ser atropelada por um camião, salvo que depois os homens te perguntam se gostaste.
As estatísticas apenas registam as violações denunciadas que, na América Latina, são sempre muito menos do que as violações ocorridas. Na sua maioria, as violadas calam-se por medo. Muitas meninas, violadas nas suas casas, vão parar à rua. Compõem a rua, corpos baratos, e algumas encontram, tal como os meninos de rua, a sua casa no asfalto. Diz Lélia, catorze anos, criada como Deus quis nas ruas do Rio de Janeiro:
- Todos roubam. Eu roubo e roubam-me.  

(Trad. Luis Leal)    

domingo, março 06, 2016

Curiosidade (Notas a caminho de Ovar, 04/03/2016)

"Sou especialista da curiosidade não especializada" Agostinho da Silva


A curiosidade tem-me ensinado tantas coisas. Livros, filmes, portas, locais, afecto, amizades... Essa curiosidade que não mata gatos, que por vezes gera alguma inquietude, é parte do que fui e vou sendo. Estou convencido que a curiosidade nunca se extinguirá. Pode ser que se acomode moldada à imediatez da técnica, na rapidez adversa à reflexão paciente ou nos seres forçados a ser adultos.
Enquanto a infância brincar, o mundo, por mais adverso e duro, avançará. A cegueira das trevas de deuses impostos ou os ateísmos déspotas do espírito não conseguem esconder o botão lúdico que cada um tem no seu íntimo.
A curiosidade, aliada à teimosia herdada, talvez mais por genética do que por outra qualquer circunstância, mantém a minha esperança e equilibra algo de artista, profissional para poder aceder ao pão, homem e pai. Curiosamente, hoje, esse balanço de ser afigura-se-me mais difícil do que normalmente costuma ser.
Agarro-me à curiosidade do cansaço. Terei sempre coragem para o funambulismo que a vida me trouxe como condição?  

Acompanhado por Galeano

"Ninguém viverá para trabalhar, mas todos trabalharemos para viver", lembro-me das palavras de Galeano... e a Elsa fotografou-me a trabalhar para que as suas palavras vivam em português.

sábado, março 05, 2016

A UM POETA (Rubén Darío)

A UM POETA (Rubén Darío)

NADA mais triste que um titã que chora,
homem-montanha agrilhoado a um lírio,
que geme, forte, que pujante implora:
vítima própria no seu fatal martírio.
Hércules louco que aos pés de Onfália 
a porra deixa e o lutar recusa,
herói que calça feminil sandália,
vate que esquece a vibrante musa.
Quem irritou os robustos leões,
fiando, escravo, com a frágil roca;
sem trabalho, sem estímulo, sem acções:
punhos de ferro e áspero pulso!
Não é poeta para pisar tapetes
por onde triunfam femininas danças:
que vibre raios para ferir as sombras,
que escreva versos que pareçam lanças.
Relampejando a soberba estrofe,
o seu sulco deixe resplandecente lume,
e o pântano do escândalo e da troça
que não o veja a águia no seu cume.
Bravo soldado com o seu elmo de ouro
lance o dardo que queima e desgarra,
que invista rude como investe o touro,
que crave firme como o leão a garra.
Cante valente e ao cantar trabalhe;
que ofereça carvalhos se se julga bosque
que a sua ideia no mal irrompa e desbrave
como na selva virgem o bisonte. 
Que o que diga a inspirada boca
soe no povo com palavra estranha;
ruído de ondulação a açoitar a rocha,
voz de caverna e sopro de montanha.
Deixe o Sansão da Dalila o regaço:
Dalila engana e corta os cabelos.
Não perca o forte o raio do seu braço
por ser escravo de uns olhos belos.

[Maio, 1890]

[trad. Luis Leal]


quinta-feira, março 03, 2016

Ao meu pai.

Ao meu pai.

Andamos na senda dos que antes nela andaram.
Calçados ou descalços
os pés pisam a incerteza do futuro.
Já eu guardo de miúdo o que alguém me disse:
- Caminhas tal qual o teu pai.

(Caminho seguro. Parabéns pai. Parabéns Sr. Hipólito Pinto).

"Power house mechanic working on steam pump", 1920 (Lewis Hine)






(Fonte: Artigo sobre Lewis Hine na Wikipédia)





quarta-feira, março 02, 2016

Olho negro (Ana Cássia Rebelo)


Decorei o poema de manhã, no refeitório, enquanto tomava o pequeno-almoço. Durante o dia, repeti-o para mim mesma como se fosse um mantra, uma oração, a minha salvação. Repeti-o depois de cada parágrafo que escrevi, perto da máquina de cafés, na rua, ao observar os sapatos feios de uma mulher que passou e deixou o seu perfume no ar, quando escutei a voz do outro lado da linha, no regresso para casa, em estranho assombro, ao dar-me conta de como a luz do final do dia é caprichosa: ilumina apenas as fachadas do prédios mais altos, suas varandas, suas janelas, velhos que se debruçam para espreitar a rua, paredes de tinta estalada, ficam os prédios mais baixos adormecidos em triste sombra. De tão presa ao poema, decidi que o diria a cada um dos meus filhos assim que os visse. Disse-o ao Joaquim quando o vi chegar. Sussurrei-lhe as palavras ao ouvido, no corredor da escola, junto do placar com as composições dos meninos do terceiro ano. Disse-o à Madalena quando, chegada do treino, se despiu e revelou o seu corpo nu. Disse-o ao João já na cama, meio adormecido, depois de o aconchegar e lhe beijar o olho negro. Equimoses de adolescente, dores de adolescente, bebedeiras de adolescente, curam-se com beijos, abraços, gestos simples. Os meus filhos escutaram-me em silêncio. Quando me calei perguntaram: “O que é isso, mãe?”. A cada um, sentindo por cada um amor infinito, belo, redentor, único, respondi: “É um poema”.

Ana Cássia Rebelo no seu blogue ana de amsterdão



terça-feira, março 01, 2016

Leocadio Mendiola

Como tantas coisas que me enriquecem, o nome, e a história, deste aviador foi-me dado a conhecer pelo bom Pedro L. Cuadrado. O Saramago, nos seus "Cadernos de Lanzarote",  fez referência ao bombardeamento que este não fez à sua cidade de Badajoz. Parece que preferiu largar a bomba no campo que vitimou uma vaca. Quem sabe este bovino não matou alguma da fome que deflagrava graças à guerra civil?
Hoje descobri o seu nome e localizei a rua que merece a coragem do seu nome. Fico com vontade de voar na biografia deste homem que tantas dores de cabeça deu à Legião Condor.