quarta-feira, maio 02, 2018

Crónica: "José, Anselmo e alguém mais" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº142, p.70)


Para Carlos Gardel vinte anos não é nada. Ou, se calhar, até é. Por isso, voltei a Évora, a este encontro entre José, Anselmo e mais alguém. O argumento ontológico, mesmo fora de moda, ainda me dá que pensar na Mais Alentejo nº142. Aos 18 de então, somemos-lhe 20. Contudo, não vale a pena fazer contas...

Según Carlos Gardel veinte años no es nada. O, quizás, es. Por eso, he vuelto a Évora, a este encuentro entre José, Anselmo y alguien más. El argumento ontológico, incluso pasado de moda, todavía me da que pensar en Mais Alentejo nº142. A los 18 de entonces, sumémosle 20. Sin embargo, no vale la pena hacer cuentas…


"José, Anselmo e mais alguém" - Luis Leal

À pata para a escola, 18 anos recém-celebrados, aluno do 12º ano e, tanto em casa como na mochila, tem os livros possíveis, a maior parte escolares ou generosos, prendas de quem dele gosta. No bolso, trocos para a senha da cantina e sonhos de honesto conhecimento, esse, que vislumbra do outro lado da circunvalação, e que visitará hoje à tarde com o seu professor de português.

Nobel da Literatura doutorado “honoris causa” pela Universidade de Évora, diz o Diário do Sul. Pode sair no exame nacional, mas nunca leu nada dele. Na paróquia, o autor não tem boa fama, atreveu-se a escrever um evangelho segundo o JC.

Lê com prazer e desconhecer um autor ainda não é juiz de qualquer intelectualidade. Adora treinar com a malta, vive entre pequenas memórias duma capelinha e a figueira do Siddhartha, porém, na flor da idade, do que mais gosta são raparigas.

Em filosofia anda a ler Santo Anselmo, o seu Proslogium e, para um gajo medieval, até o considera bastante convincente. Tem o livro todo sublinhado, apontamentos a lápis, principalmente a frase resumo do seu pensamento: Deus é algo mais do que o qual nada pode ser pensado. Acha que a entende. Deus está na nossa cabeça. Se é capaz de entender o seu conceito, ele existe. Se tem barba, túnica e lança raios, o santo da Cantuária não especifica. Gosta de estudar filosofia. O seu professor põe música clássica na aula e uma vez chorou. Talvez fora de o ver assim, ou da melodia, mas também ele tinha um nó na garganta. Disfarçou. Ainda não está preparado para chorar em público.

Alguns dos seus colegas vão baldar-se à cerimónia. Outros levam livros para autografar - fica bem dizer que são para eles quando, na realidade, são para os seus pais -. Ele tem um caderno, o estojo dos lápis, uma sandes de fiambre do bar da escola e o livro de filosofia.

A maioria da turma são raparigas. Sente-se bem no meio delas. Não por gostar muito do sexo oposto, sim por serem fixes e estimar a sua amizade. Estudam humanidades acostumados a ouvirem previsões de desemprego e, quando comparados com a malta do científico-natural, há docentes a atestarem o seu baixo QI, embora isso seja inversamente proporcional a tanta coisa, até às notas na pauta.

Da Industrial ao Espírito Santo é um tirinho. Já estão a ouvir o discurso do novo Nobel. Contudo não é novo, parece cansado e não está para concursos de simpatia. Como a sua mãe diz, tem dom de palavra. Não percebe a crítica à falta de vírgulas. O homem pontua-o. Sem comprometer-se com a obrigatoriedade do sistema, impõe a si mesmo ler o Memorial do Convento.

Acompanha o escritor a sua mulher, espanhola, mais nova, bonita. Será de Badajoz? Espanha para ele é Badajoz, antenas do bairro a Nascente e mulheres bonitas. No outro dia viu um filme espanhol no Canal 2. Gostou. Porrada épica com patas de presunto.

Terminado o acto, uma fila pede autógrafos. Gostava de ter um, lamentando não ter nenhum livro. No caderno não, tem a letra feia e não se pode ser mais foleiro. E se for no Proslogium? Epá, que vergonha! O que é que o homem lhe pode fazer? Negar-lho? Que se lixe, não está a fazer mal a ninguém! Frente a frente com José Saramago, diz-lhe:

- Desculpe, gostaria muito de ter um autógrafo seu, mas não tenho nenhum livro da sua autoria. Pode assinar-me o meu livro de filosofia?

Sem expressividade ou simples cansaço na cara, pergunta-lhe:

- Então o que é que andas a ler?

- O “Proslogium”. – Contesta ao Nobel neto de analfabetos, como ele.

Num ateísmo tranquilo, firma a primeira página dizendo:

- Interessante, rapaz. Interessante.

Grato, volta a casa triunfante. O seu livro de filosofia tem a assinatura dum Nobel! Retribuirá a amabilidade com leituras atentas. No entanto, vê-lo-á morrer, incómodo, como a erva daninha que lhe deu apelido, tantas vezes olvidada como comestível, graças a raízes sinceras com a terra.

Reconhecido há vinte anos pela Academia Sueca, matou a fome a muita pobreza de cultura em português mundo fora. Sem Deus, e sem purismo sintáctico, tornou-se algo mais para muitos. Para ele, mais que argumento ontológico, é infraestrutura necessária à sua condição.  Entristece-o a imposição de viver a 120km/h e a desatenção à Ponte Internacional José Saramago, sobre o rio Caia, a unir Portugal e Espanha.




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