Para Carlos Gardel vinte anos não é nada. Ou, se calhar,
até é. Por isso, voltei a Évora, a este encontro entre José, Anselmo e mais
alguém. O argumento ontológico, mesmo fora de moda, ainda me dá que pensar na Mais
Alentejo nº142. Aos 18 de então, somemos-lhe 20. Contudo, não vale a pena
fazer contas...
Según
Carlos Gardel veinte años no es nada. O, quizás, es. Por eso, he vuelto a
Évora, a este encuentro entre José, Anselmo y alguien más. El argumento ontológico,
incluso pasado de moda, todavía me da que pensar en Mais Alentejo nº142. A
los 18 de entonces, sumémosle 20. Sin embargo, no vale la pena hacer cuentas…
"José, Anselmo e mais alguém" - Luis Leal
À pata para a escola, 18 anos
recém-celebrados, aluno do 12º ano e, tanto em casa como na mochila, tem os
livros possíveis, a maior parte escolares ou generosos, prendas de quem dele
gosta. No bolso, trocos para a senha da cantina e sonhos de honesto
conhecimento, esse, que vislumbra do outro lado da circunvalação, e que visitará
hoje à tarde com o seu professor de português.
Nobel da Literatura doutorado “honoris
causa” pela Universidade de Évora, diz o Diário do Sul. Pode sair no exame
nacional, mas nunca leu nada dele. Na paróquia, o autor não tem boa fama, atreveu-se
a escrever um evangelho segundo o JC.
Lê com prazer e desconhecer um
autor ainda não é juiz de qualquer intelectualidade. Adora treinar com a malta,
vive entre pequenas memórias duma capelinha e a figueira do Siddhartha, porém,
na flor da idade, do que mais gosta são raparigas.
Em filosofia anda a ler Santo
Anselmo, o seu Proslogium e, para um gajo medieval, até o considera bastante
convincente. Tem o livro todo sublinhado, apontamentos a lápis, principalmente
a frase resumo do seu pensamento: Deus é algo mais do que o qual nada pode ser
pensado. Acha que a entende. Deus está na nossa cabeça. Se é capaz de entender
o seu conceito, ele existe. Se tem barba, túnica e lança raios, o santo da
Cantuária não especifica. Gosta de estudar filosofia. O seu professor põe
música clássica na aula e uma vez chorou. Talvez fora de o ver assim, ou da melodia, mas também ele tinha um nó na
garganta. Disfarçou. Ainda não está preparado para chorar em público.
Alguns dos seus colegas vão baldar-se
à cerimónia. Outros levam livros para autografar - fica bem dizer que são para
eles quando, na realidade, são para os seus pais -. Ele tem um caderno, o
estojo dos lápis, uma sandes de fiambre do bar da escola e o livro de filosofia.
A maioria da turma são raparigas.
Sente-se bem no meio delas. Não por gostar muito do sexo oposto, sim por serem
fixes e estimar a sua amizade. Estudam humanidades acostumados a ouvirem previsões
de desemprego e, quando comparados com a malta do científico-natural, há
docentes a atestarem o seu baixo QI, embora isso seja inversamente proporcional
a tanta coisa, até às notas na pauta.
Da Industrial ao Espírito Santo é
um tirinho. Já estão a ouvir o discurso do novo Nobel. Contudo não é novo,
parece cansado e não está para concursos de simpatia. Como a sua mãe diz, tem
dom de palavra. Não percebe a crítica à falta de vírgulas. O homem pontua-o. Sem
comprometer-se com a obrigatoriedade do sistema, impõe a si mesmo ler o
Memorial do Convento.
Acompanha o escritor a sua
mulher, espanhola, mais nova, bonita. Será de Badajoz? Espanha para ele é
Badajoz, antenas do bairro a Nascente e mulheres bonitas. No outro dia viu um
filme espanhol no Canal 2. Gostou. Porrada épica com patas de presunto.
Terminado o acto, uma fila pede
autógrafos. Gostava de ter um, lamentando não ter nenhum livro. No caderno não,
tem a letra feia e não se pode ser mais foleiro. E se for no Proslogium? Epá,
que vergonha! O que é que o homem lhe pode fazer? Negar-lho? Que se lixe, não
está a fazer mal a ninguém! Frente a frente com José Saramago, diz-lhe:
- Desculpe, gostaria muito de ter
um autógrafo seu, mas não tenho nenhum livro da sua autoria. Pode assinar-me o
meu livro de filosofia?
Sem expressividade ou simples
cansaço na cara, pergunta-lhe:
- Então o que é que andas a ler?
- O “Proslogium”. – Contesta ao
Nobel neto de analfabetos, como ele.
Num ateísmo tranquilo, firma a
primeira página dizendo:
- Interessante, rapaz. Interessante.
Grato, volta a casa triunfante. O
seu livro de filosofia tem a assinatura dum Nobel! Retribuirá a amabilidade com
leituras atentas. No entanto, vê-lo-á morrer, incómodo, como a erva daninha que
lhe deu apelido, tantas vezes olvidada como comestível, graças a raízes sinceras
com a terra.
Reconhecido há vinte anos pela
Academia Sueca, matou a fome a muita pobreza de cultura em português mundo
fora. Sem Deus, e sem purismo sintáctico, tornou-se algo mais para muitos. Para
ele, mais que argumento ontológico, é infraestrutura necessária à sua condição.
Entristece-o a imposição de viver a
120km/h e a desatenção à Ponte Internacional José Saramago, sobre o rio Caia,
a unir Portugal e Espanha.
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