Gosto de parafusos, porcas, anilhas e toda essa parafernália de ferragens que fazem parte de quase todos os objectos do nosso dia-a-dia. Sou daqueles que se vêem um parafuso no chão não o deixam abandonado e o recolhem numa caixinha, repleta de divisórias, para usos futuros. O certo é que muitíssimas das ferragens acolhidas têm conhecido segundas oportunidades, como os parafusos de fenda hoje recuperados para os guarda-lamas da bicicleta da Elsa. O meu filho mais velho faz o mesmo. Sei que o faz por imitação e não lhe escondo o meu orgulho, dizendo-lhe «vais ver que esse parafuso ainda nos vai desenrascar!».
Um exemplo disso foi, há uns meses, em León, estávamos num parque da cidade onde tinha havido uma feira, com comes e bebes, na noite anterior. No meio das brincadeiras, foi um regalo vê-lo com o irmão apanhar mãos cheias de porcas que por ali ficaram abandonadas. Algumas já as usámos, no barracão da aCourela, principalmente, porém outras estão guardadas nesses compartimentos para as segundas oportunidades de bricolage caseira.
Encontrar algo útil, como estas ferragens, é tão importante para mim como encontrar um primeiro verso ou uma frase desbloqueadora do que me vai por dentro. Parece que tudo encaixa, ou enrosca para ser mais concreto, num perfil que gosto de comparar com ideologias políticas: para a esquerda alivia, para a direita aperta. O centro não me traz analogias para este tipo de mãos à obra.
Contudo, ter as mãos sujas de óleo é sinónimo de realização pessoal como é o calo na falange do dedo medio direito ou do cansaço dorsal do ecrã do portátil. Escrevo isto a correr o risco de ser interpretado como um funcionário público a fazer-se passar por pseudo-operário. Talvez o seja, mas não me preocupa como me vêem. Preocupa-me como me sinto. Os parafusos cada vez mais desapertados pela sociedade, em que os próprios líderes mundiais denunciam a falta de um, dois, ou vários fundamentais ao seu exercício cerebral, não ajuda muito. Tenho pena da dignidade das mãos sujas de trabalho cada vez menos quererem agarrar um livro, cada vez mais se aliviarem nos ecrãs tácteis e perderem a consciência da sua essência, da sua classe. Classes sociais inconscientes do seu lugar no sistema é assustador e não me augura solidez democrática e veta a passagem à mobilidade social. Os pobres de hoje dificilmente ascenderão a uma classe média e riqueza só em sonhos.
Enfim, a verdade é que, para mim, as porcas e os parafusos, se o torno e o trabalho de torneiro for de qualidade, encontram sentido para as suas existências em espiral. Enroscadas erguem e dão firmeza a todo tipo de construção e obras de diversas engenharias humanas. Encontro alguma felicidade e consolo de chave de fendas, philips ou aparafusadora na mão. Do empirismo das ferramentas alimenta-se muito boa gente. Não necessito sujar as mãos de óleo para comer e não tenho de trabalhar como operário, como o fez parte dos meus no passado para que pudesse estudar e optar por outro rumo profissional. Hoje olho para o que faço e sei que, quando tudo parece não ter sentido no meu trabalho, posso encontrar as minhas pequenas obras desenrascadas com parafusos que por aí andaram tão perdidos como eu...
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