Durante anos, este fora um dos
dias mais celebrados e bonitos da minha vida. À porta de Maio, ia pela mão dos
meus pais, lá a cima, à praça da minha cidade onde, à meia-noite, passos coletivos
na gravilha do tempo nos levavam a cantar uma terra de fraternidade sonhada
pela geração que me educou.
Mantive sempre o hábito de ir
cantar a liberdade que aprendera, até a minha vida se assumir do outro lado da
fronteira, onde, este dia de Abril, não é uma efeméride para a hispanidade.
A necessidade de uma canção, de
uma utopia (talvez vestígios duma saudade herdada por circunstância), impôs-se
de tal maneira que decidi agarrar no carro e ir até Portugal fazer o que quer
que fosse. Castelo de Vide era perto e não hesitei em seguir o que a memória
tinha lido, no final da adolescência, sobre um nobre militar no livro “Um Homem
da Liberdade” de António de Sousa Duarte.
De Valencia de Alcántara a
Castelo de Vide, seja qual for a estação do ano, todos os quilómetros são belos.
Sabemos que existe uma fronteira mas só a vemos se quisermos.
A frugalidade, robusta de motor,
do meu velho Clio, sentia-se bem na solidão daqueles freixos pintados à sombra
de Marvão. Conduzir por ali faz-nos ser parte da paisagem. Ainda hoje sei que
vagueia qualquer coisa de mim por aquelas bandas.
Castelo de Vide mantém frescura e
mata a sede ao calor do Alentejo. Sabe receber e não é preciso averiguar a sua
tradição judia para sentirmo-nos bem-vindos. Estacionei nas imediações da fonte
do Montorinho. Fazia um calor intermédio, pouco vulgar destas estações
esquecidas pelos extremismos das alterações climáticas. Os sapatos eram
confortáveis, mas o pé ainda coxeava, recém-liberto das muletas, fruto de uma
queda que me levou o tornozelo direito diretamente à sala de operações. Doía-me
estar de pé e, para aquecer a rigidez da articulação, caminhei até um quiosque
no qual comprei uma revista. Aproveitei para ter certeza onde era o cemitério.
- Vá sempre em frente, passa o
jardim e depois de atravessar o parque. Não tem nada que enganar!
Habituado à dor esqueço o
sofrimento. Caminhei só. Anónimo, cruzei-me com alunos que não tinham aulas e
idosos sem conversa. Escasso de sombra, reparei com agrado que o dia do
calendário coincidia com o nome do parque.
Ao lado da entrada do cemitério
está uma capela, ao espreitar lá para dentro, lembrei-me do pároco polémico da
localidade por causa de umas homilias divulgadas pelos media. Não estava ali por
isso, logo eliminei esse recordatório inútil da minha mente.
Um deserto de gente. Não sendo um
cemitério de uma cidade, a vila é suficientemente grande para que a procura
duma sepultura exigisse possivelmente mais tempo do que eu dispunha. Adentrei-me
mais e, por casualidade, junto a uma torneira a encher um pequeno regador,
estava uma senhora cujas roupas, se não eram negras, eram de escuras
tonalidades. Dirigi-me a ela com o sol do final da tarde a iluminar-lhe o
rosto, rasgado num sorriso reconfirmado pela sintonia das suas rugas.
- Boa tarde minha senhora,
desculpe incomodar. Não me sabe dizer onde é que está a campa do capitão?
Se o sorriso já existia, nesse
momento confirmou-se feliz.
- Claro que sei. É aqui pertinho.
Eu vou lá consigo!
Sem vontade de incomodar,
caminhámos lado a lado. Quero recordar que lhe agradeci de imediato a simpatia,
no entanto sou incapaz de escrever as palavras, ou o silêncio, que tivemos um
para o outro naqueles passos comuns pelo cemitério.
Lá de cima, acredito que Senhora
da Penha nos observou devota desta região e da sua gente.
Em frente da simplicidade de uma
campa rasa, com cravos ainda frescos, emocionei-me com as inscrições “Ao
Tenente-Coronel Salgueiro Maia (…) Conquistador do sonho inconquistado / Havia
em ti o herói que não se integra”.
- Foi um grande homem. – Disse-o
com o orgulho de um filho de um ferroviário que homenageia a biografia de outro
filho de um ferroviário.
Desaparecia a tarde de um dia 25
Abril. O meu 25 de Abril. Tinha 26 anos e, ao meu lado, a generosidade de uma
senhora (a qual jamais esquecerei) confirmou-me que Abril em mim será sempre um
pequeno milagre de bondade e altruísmo que todo o homem comum leva dentro.
- Eu sei. Era o meu Fernando
José, o meu afilhado.
Nota: Fernando José Salgueiro Maia perdeu a sua mãe, Francisca Silvério
Salgueiro, num acidente de trânsito em Lisboa. Tinha 4 anos. O seu pai voltou a
casar, dois anos mais tarde, com Maria Augusta Salgueiro, a quem Fernando José
ao longo da vida tratou por madrinha. À D. Maria Augusta dedico esta crónica.
Foto
de Fernando José Salgueiro Maia com 8 anos (in “Salgueiro Maia – Um Homem da
Liberdade” de António de Sousa Duarte).
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