segunda-feira, abril 25, 2016

Era o meu Fernando José, o meu afilhado. (in "nós-otros")

Durante anos, este fora um dos dias mais celebrados e bonitos da minha vida. À porta de Maio, ia pela mão dos meus pais, lá a cima, à praça da minha cidade onde, à meia-noite, passos coletivos na gravilha do tempo nos levavam a cantar uma terra de fraternidade sonhada pela geração que me educou.

Mantive sempre o hábito de ir cantar a liberdade que aprendera, até a minha vida se assumir do outro lado da fronteira, onde, este dia de Abril, não é uma efeméride para a hispanidade.

A necessidade de uma canção, de uma utopia (talvez vestígios duma saudade herdada por circunstância), impôs-se de tal maneira que decidi agarrar no carro e ir até Portugal fazer o que quer que fosse. Castelo de Vide era perto e não hesitei em seguir o que a memória tinha lido, no final da adolescência, sobre um nobre militar no livro “Um Homem da Liberdade” de António de Sousa Duarte.

De Valencia de Alcántara a Castelo de Vide, seja qual for a estação do ano, todos os quilómetros são belos. Sabemos que existe uma fronteira mas só a vemos se quisermos.

A frugalidade, robusta de motor, do meu velho Clio, sentia-se bem na solidão daqueles freixos pintados à sombra de Marvão. Conduzir por ali faz-nos ser parte da paisagem. Ainda hoje sei que vagueia qualquer coisa de mim por aquelas bandas.

Castelo de Vide mantém frescura e mata a sede ao calor do Alentejo. Sabe receber e não é preciso averiguar a sua tradição judia para sentirmo-nos bem-vindos. Estacionei nas imediações da fonte do Montorinho. Fazia um calor intermédio, pouco vulgar destas estações esquecidas pelos extremismos das alterações climáticas. Os sapatos eram confortáveis, mas o pé ainda coxeava, recém-liberto das muletas, fruto de uma queda que me levou o tornozelo direito diretamente à sala de operações. Doía-me estar de pé e, para aquecer a rigidez da articulação, caminhei até um quiosque no qual comprei uma revista. Aproveitei para ter certeza onde era o cemitério.

- Vá sempre em frente, passa o jardim e depois de atravessar o parque. Não tem nada que enganar!

Habituado à dor esqueço o sofrimento. Caminhei só. Anónimo, cruzei-me com alunos que não tinham aulas e idosos sem conversa. Escasso de sombra, reparei com agrado que o dia do calendário coincidia com o nome do parque.

Ao lado da entrada do cemitério está uma capela, ao espreitar lá para dentro, lembrei-me do pároco polémico da localidade por causa de umas homilias divulgadas pelos media. Não estava ali por isso, logo eliminei esse recordatório inútil da minha mente.  

Um deserto de gente. Não sendo um cemitério de uma cidade, a vila é suficientemente grande para que a procura duma sepultura exigisse possivelmente mais tempo do que eu dispunha. Adentrei-me mais e, por casualidade, junto a uma torneira a encher um pequeno regador, estava uma senhora cujas roupas, se não eram negras, eram de escuras tonalidades. Dirigi-me a ela com o sol do final da tarde a iluminar-lhe o rosto, rasgado num sorriso reconfirmado pela sintonia das suas rugas.

- Boa tarde minha senhora, desculpe incomodar. Não me sabe dizer onde é que está a campa do capitão?

Se o sorriso já existia, nesse momento confirmou-se feliz.

- Claro que sei. É aqui pertinho. Eu vou lá consigo!

Sem vontade de incomodar, caminhámos lado a lado. Quero recordar que lhe agradeci de imediato a simpatia, no entanto sou incapaz de escrever as palavras, ou o silêncio, que tivemos um para o outro naqueles passos comuns pelo cemitério.

Lá de cima, acredito que Senhora da Penha nos observou devota desta região e da sua gente.

Em frente da simplicidade de uma campa rasa, com cravos ainda frescos, emocionei-me com as inscrições “Ao Tenente-Coronel Salgueiro Maia (…) Conquistador do sonho inconquistado / Havia em ti o herói que não se integra”.

- Foi um grande homem. – Disse-o com o orgulho de um filho de um ferroviário que homenageia a biografia de outro filho de um ferroviário.

Desaparecia a tarde de um dia 25 Abril. O meu 25 de Abril. Tinha 26 anos e, ao meu lado, a generosidade de uma senhora (a qual jamais esquecerei) confirmou-me que Abril em mim será sempre um pequeno milagre de bondade e altruísmo que todo o homem comum leva dentro.

- Eu sei. Era o meu Fernando José, o meu afilhado.

Nota: Fernando José Salgueiro Maia perdeu a sua mãe, Francisca Silvério Salgueiro, num acidente de trânsito em Lisboa. Tinha 4 anos. O seu pai voltou a casar, dois anos mais tarde, com Maria Augusta Salgueiro, a quem Fernando José ao longo da vida tratou por madrinha. À D. Maria Augusta dedico esta crónica.

Foto de Fernando José Salgueiro Maia com 8 anos (in “Salgueiro Maia – Um Homem da Liberdade” de António de Sousa Duarte).


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