Acabo de ver o meu sangue, tão vermelho quanto insignificante, a correr pelo vácuo destas novas seringas com uma espécie de tubinho a acabar num encaixe para tirar amostras.
É rotina, como a urina matinal que também trouxe para análise, num frasquinho de plástico, comprado há dias na farmácia.
Nunca tive medo de agulhas. Talvez quando era puto, mas não me lembro. Entre espetar e lacerar, não duvido. A cicatriz do primeiro não se nota tanto, por vezes nem sequer se vê. Não ver ajuda a não recordar, a não sentir.
Lembro-me do meu pai me dar um carrinho depois de fazer análises, teria eu uns seis, sete anos. Uma pequena Toyota de caixa aberta, branca, que apenas existe na memória da minha infância, com um pequeno depósito que enchia na bomba de gasolina de brincar que me deram num Natal.
As veias denunciam a minha circulação sanguínea. Vêem-se bastante bem. Sempre se viram bem, quer por brancura, quer por saliência na pele. Foi tão fácil extrair-me sangue que quase nem me apercebi da agulha a invadir a veia do braço direito. O meu olhar acompanhava o capilar de plástico enrojecido pelo plasma que de mim saía. Três pequenos tubos. Talvez 50ml de mim que irão para analizar e que dirão o que sou em colesterol, triglicéridos, ferro e outros pormenores invisíveis a olho nu.
Pergunto-me, o que farão com o meu sangue depois? Livrar-se-ão dele? Vai para um depósito com o sangue de outras pessoas? O que pensará a pessoa que me analisará ao microscópio? Será homem, mulher ou uma máquina a quem ligaram um botão? Aquecer-se-á o sangue para estar mais ou menos a 37graus? Tendo a perguntar-me demasiadas coisas que preferia não perguntar, mas que pergunto porque sou estúpido.
Jamais poderemos livrar-nos do nosso sangue. Podemos livrar-nos do nome, do apelido, esquecer o dia em que nascemos, omitir tudo o que herdámos e não pedimos para herdar. Mas o sangue, mesmo que contaminado, por alguma bem intencionada transfusão (ou por uma viciada seringa), mais ou menos espesso, nunca o deixaremos de ter a correr pelas nossas veias, nem mesmo na pior das opções de nos querermos esvair num fio até ao final. Sempre haverá resíduos do sangue que herdaste.
Serão os meus filhos conscientes da imposição do sangue, algum dia, como eu hoje o sou em relação aos seus avós? Terá o meu sangue a qualidade suficiente para amparar este corpo que se vai perdendo nos meandros da alma e da finitude dos dias?
Mais perguntas para um homem só e a sentir-se particularmente inútil.
Ainda tenho o algodão na veia colado com um bocadinho de «esparadrapo». Escrevo «esparadrapo» porque, neste preciso momento, não sou capaz de lembrar-me como se diz em português.
O meu cérebro irrigado por sangue lusitano cada vez se oxigena mais com ar espanhol. O meu cérebro bloqueia-se com palavras concretas. No outro dia foi «troçolho». Tinha um na pálpebra esquerda mas não me chateou tanto como não ser capaz de me lembrar como se dizia na minha língua materna. «Orzuelo», dizia-me o José Manuel, em espanhol. Acho que não me vou esquecer, ficou-me no ouvido e no olho, como me esqueci de comer porque estou em «ayunas», para poder tirar este sangue em jejum.
Em jejum o nosso sangue é mais sincero. De barriga cheia, damo-nos a luxos e a caprichos que nos afastam da essência. Mentimo-nos a nós próprios. Por isso é que eu quero ir comer. Tenho medo de me encontrar com a fome que trago no meu sangue.
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