Um Diário Perdido de
Miguel Torga
Advertência
ao leitor:
Durante o Verão de 1950, entre
Agosto e Outubro, Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, um dos
maiores vultos da cultura portuguesa do século XX, percorreu alguns países
europeus como França, Itália, o Principado do Mónaco, Suíça e Espanha. O
périplo espanhol, do ano em questão, levou-o à Salamanca do seu admirado
Unamuno, à capital Madrid, ao Escorial de Filipe II, a Toledo e à cidade condal
de Barcelona, com passagens por Maiorca e por Ávila.
Foi nesta última cidade, mais precisamente
numa pensão do centro histórico, onde se encontrou uma primeira edição do livro
La sombra del ciprés es alargada de
Miguel Delibes com uma quartilha escrita em língua portuguesa dentro. O
exemplar foi encontrado em 2013 por um turista português que se alojou no
estabelecimento familiar e que a transcreveu para o seu blog pessoal.
Infelizmente, só tenho constância
desta transcrição que me foi facilitada pelo próprio viajante, cuja sorte de
ter consultado o original, na biblioteca pessoal do pai do actual dono da
pensão de Ávila, me foi narrada com encanto de leitor e de bibliófilo. Eu
apenas o auxiliei a contextualizar nos Diários
esta entrada que nos parece estar extraviada da obra diarística de Torga.
Ao contrário do português, Miguel
Delibes nunca assumiu a sua humanidade “com as dimensões da Península, com
todas as contradições que a dilaceram harmonizadas”, contudo, o seu humanismo,
sincero em amor a Castela e, desse território, ao mundo, sempre me pareceu estar
destinado a encontrar-se com o de Torga. Não se encontraram ao abrigo dum
negrilho, sim à sombra de um cipreste. Já este meu casual encontro foi com
alguém que, se não existisse, merecia a pena ser imaginado.
«Ávila, 29 de Agosto de 1950 – A pedra destas muralhas está que
parece que saiu hoje da pedreira. Compenetrada da sua função de não deixar
fugir a mais pequena parcela do fanatismo que sitia, não deu sequer pela erosão
que passou ao seu lado. Granito temporal a cercar granito intemporal!
Chama-me à atenção um livro num
escaparate duma livraria, La sombra del
ciprés es alargada, de um jovem chamado Miguel Delibes. Em português, A Sombra do Cipreste é Longa.
Entro e após uma conversa com a senhora
da livraria que me atendeu, Teresa de nome, como a santa aqui da terra e da
nossa Ibéria, liberto as pesetas da algibeira e trago comigo a novela deste meu
tocaio. A minha intuição foi laureada com o Prémio Nadal de 1947, vejo, sem me
despertar mais interesse do que aquele que já tenho graças à sombra dessa
árvore tão ascética como profunda em raízes espalhadas por terra onde abundam
corpos à espera da eternidade do húmus.
Está ambientada aqui no burgo abulense, mas este jovem tem território
bem demarcado. É de Valladolid, essa cidade rainha de Castela, onde Cervantes
acabou de escrever as andaduras do cavaleiro da triste figura. Quevedo também
por lá andou e eu espero por lá andar, quem sabe em breve[1].
Não sei se foi uma obra de
sinceridade, esta obra de principiante. Porém, é uma obra honesta, fiel a
qualquer coisa que levou este Miguel Delibes a escrever o seu Pedro na primeira
pessoa. O protagonista é como esta pedra de Ávila, uma pedra que não foi
protegida ao sair da canteira e acabou por ficar encerrada por todas as outras a
conformarem estas muralhas frias até mesmo para este mês de Agosto.
Ainda não pude terminar com a
sombra desta árvore. A pouca luz desta pensão não me permite serões de leitura,
mas antevejo mar nas páginas que pude ler. Quando há pessimismo o mar ajuda a
aliviar a carga do fim e balança-nos em memórias amnióticas do ventre materno.
Portugal aventurou-se ao mar por isso, sabemo-lo bem, e não fosse ele órfão de
pai e desavindo em carinho com a mãe.
Há futuro para este Pedro, para
esta personagem de Ávila. Cresce na narrativa equilibrado com a vida e não sei
como acabará. Talvez amanhã, ou depois, descubra se escapou ao pessimismo da
vida ou se sucumbiu a ele, inevitavelmente.
E há futuro para este Miguel
Delibes. Este jovem escritor de Castela procura o seu estilo pessoal para além
do seu território, da sua cidade e da ruralidade do seu entorno. Fá-lo sem se
impor, sem afã de conquista e de submissão. Caminha, página a página, pelos montes de pobreza oculta destas terras, cegas pelo orgulho castelhano, porém
iluminadas pelo sol peninsular.
Se for caçador, parece-me que será
uma boa espingarda. Sabe ao que aponta e não aponta por apontar. Seria um bom
companheiro para ir às perdizes. É inteligente e a sua prosa parece-me sincera,
sem qualquer necessidade de se comprometer com destinos de poeta. Prefiro
assim. Gosto de admirar. E só o espírito me deslumbra o espírito. Delibes
começou bem e estas pedras intemporais de Ávila dizem-me que vai acabar melhor.».
[1] Miguel Torga
esteve em Valladolid no ano seguinte, em 1951, mais precisamente no dia 10 de
Setembro, como é possível confirmar nas páginas do seu Diário XI.
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