quarta-feira, agosto 23, 2006

António de Andrade - A Última Fronteira


Poucos conhecem a aventura deste beirão de Oleiros que, nos idos de seiscentos, partiu de Agra, no Norte da Índia, e caminhou até Tsaparang, em pleno Tibete Central, onde estabeleceu uma missão. Aos alpinistas modernos, as condições da viagem do padre António de Andrade pelas montanhas do Himalaia não deixariam de causar arrepios. Levando apenas "um cambolim pera se cobrir, e um alforge com algua cousa pera comer", Andrade subiu aos píncaros mais altos do globo e atravessou a enorme parede do Himalaia pela portela de Mana, a mais de cinco mil metros de altitude. Pelo caminho, descobriu uma das nascentes principais do rio Ganges e passou tormentos indescritíveis.A notícia da descoberta do Tibete, publicada em Lisboa em 1626 e recentemente reproduzida numa obra de Hugues Didier, foi traduzida em várias línguas e causou grande sensação em toda a Europa. Uma vez mais, julgava-se estar perante o lendário reino do Grão Cathayo, que Marco Polo situara algures na Ásia e onde, supostamente, existiriam cristãos. Desde a Idade Média que circulavam na Europa notícias vagas dessas "cristandades perdidas"- a localização desses reinos deslocava-se nos mapas à medida que se exploravam novas terras, mas, em meados do XVII, uma boa parte do mundo estava ainda por descobrir.A 30 de Março de 1624, o padre António de Andrade partiu de Agra para acompanhar Jahangir, imperador mongol, a Caxemira. Em Deli, ao saber que uma caravana de peregrinos partia para um afamado templo, a mês e meio de caminho para nordeste, o jesuíta decidiu segui-los, ciente de que encontraria comunidades cristãs - ou que já o teriam sido em tempos - para além dos Himalaias.Andrade, o irmão Manuel Marques e dois criados deixaram a cidade disfarçados de muçulmanos, "com toucas e cabaias". Seguindo pelo rio Ganges, iniciaram a subida das primeiras montanhas do Himalaia. São elas as mais fragosas e altas, que parece haver no mundo. (...) Basta saber que depois de andar dois dias desde pela manhã até noite, não acabamos de passar ua." Nalguns trilhos só era possível caminhar pé ante pé. "São pela maior parte aquelas serras tão talhadas a pique, como se por arte estivessem a plumo', correndo-lhe lá no profundo como em um abismo o rio Ganges, que por ser mui caudaloso e se despenhar com notável estrondo por grande penedia entre serras tão juntas acrescenta com seu eco o pavor que a estreiteza do caminho causa a quem vai passando." Apesar da dureza do percurso, havia entre os peregrinos "muitos de crescida idade, já com os pés na cova, e muito inferiores a nós nas forças e na idade, que nos serviam de boa confusão".Em Srinagar, capital da província de Garhwal, "nos fizeram grandes exames de quem nós éramos, de nossa pretensão". Alguns dias e muitas perguntas depois continuaram, passando o Ganges várias vezes, "por cima da neve que o cobria por grandes tratos, indo ele fazendo por baixo seu curso com grande estrondo", e, "ao cabo de mês e meio chegamos ao pagode Badrid", ou Badrinath, a 3.170 metros de altitude. Andrade notou as fontes de água quente que brotavam no local, bem como os costumes daquele povo da montanha.A portela de Mana, a 5.604 metros de altitude, só permite a passagem durante dois meses do ano. Impaciente, Andrade fez uma primeira tentativa falhada que quase lhe custou a vida: "Nos pés, mãos e rosto, não tínhamos sentimento ( ... ) Aconteceu-me pegando em não sei quê, cair-me um bom pedaço do dedo, sem eu dar fé disso, nem sentir ferida, se não fora o muito sangue que dela corria. Os pés foram apodrecendo de maneira, que de mui inchados, no-los queimavam depois com brasas vivas, (...) e com mui pouco sentimento nosso."Durante o intento, descobriu uma das principais nascentes do Ganges, um tanque encravado na encosta do monte Kamet. Para lá da portela de Mana estendia-se o vasto planalto do Tibete, mas era impossível prosseguir com a vista dos olhos quase toda perdida (....), sem poder rezar o oficio divino, nem ainda conhecer uma só letra do breviário". Viu-se então obrigado a voltar para trás e a tentar novamente semanas mais tarde. Desta vez, mandaram avisar o rei do Guge, um dos reinos do Tibete, da sua chegada, e este enviou-lhes guias e cavalos para facilitar o último troço do caminho. No início de Agosto de 1624, o missionário entrava na cidade real de Tsaparang, na margem do rio Sutlej, e a população saía à rua para acolher aquela "gente muito estranha e nunca vista por aquelas terras". O rei do Guge recebeu os missionários com todas as honras. Espantava-o a fé inabalável deste homem que sofrera as piores agruras para lhe trazer a lei do seu deus. Andrade permaneceu quase um mês no Tibete e prometeu voltar no ano seguinte. Para trás deixou urna imagem de Nossa Senhora e crucifixos que a família real passou a usar ao peito.De regresso a Agra, Andrade apressou-se a escrever ao provincial da Companhia, em Goa, informando-o da sua viagem. O entusiasmo era notório. O rei do Tibete mostrara-se favorável aos missionários e ao cristianismo, e prometia até receber o baptismo. O ambiente era propício ao estabelecimento de uma missão, e Andrade partiu nos princípios de Junho de 1625 com o padre Gonçalo de Souza, de Matosinhos, e o irmão Manuel. Dois meses e meio depois chegam a Tsaparang e Andrade volta a escrever dando conta da nova missão. Fala dos reinos do Tibete - Guge, onde se encontram, Ladak e Rudok, para norte, e Utsang, para leste -, referindo que Katai não é o Grão Cathayo procurado pelos navegadores, mas uma cidade próxima do Sul da China. Relata a vida, a religião, as rotas comerciais, os costumes, a morfologia, a vegetação, o clima e as várias povoações das regiões dos Himalaias, fornecendo inúmeras informações sobre paragens até então desconhecidas.As semelhanças entre alguns aspectos da religião dos lamas e da religião cristã confunde o missionário, que vê na primeira uma forma deturpada da segunda. Andrade envolve-se em acesas discussões teológicas com os lamas mas, obrigados a comunicar em três línguas diferentes e dada a natureza dos assuntos discutidos, o entendimento era praticamente impossível. Conclui que os tibetanos não são cristãos, mas povos "mui diferentes de todos aos de que tivemos notícias até agora".A 12 de Abril de 1626, dia de Páscoa, foi colocada a primeira pedra da igreja dedicada à Virgem da Esperança. No início do Verão chegavam reforços à missão de Tsaparang. Desta vez, os missionários percorreram um caminho mais transitável a partir de Nova Deli, seguindo para norte e depois sempre ao longo do rio Sutlej para noroeste. No Natal desse ano a família real assistiu à missa na igreja, e visitou o presépio com grande deferência.Uma terceira carta escrita em Setembro de 1627 dava conta de três padres em Tsaparang, ocupados no estudo da língua. "A nossa igreja está de todo acabada, e tão graciosa e aprazível que não há mais que desejar." O padre António Pereira chegava nesse ano para estabelecer uma missão em Rudok, 200km a norte de Tsaparang, e, até 1629, outros missionários passariam por aquela missão. Em finais de 1629, Andrade regressava a Goa para ocupar o cargo de provincial da Companhia. Morreu envenenado a 19 de Março de 1634.Passariam quase 200 anos até os oficiais ingleses Webb e Raper percorrerem o mesmo caminho de Andrade, numa expedição às nascentes do Ganges, em 1807. A António de Andrade, missionário, explorador e diplomata português, cabe a glória de ter sido o primeiro europeu a subir ao tecto do mundo e a desbravar as fronteiras do que era até então conhecido. Um contributo indiscutível para o conhecimento do planeta e um justo lugar entre os heróis dos Descobrimentos.
Texto de Rosário Sá Coutinho, In "National Geographic", Maio 2002

1 comentário:

Anónimo disse...

Simplesmente fantástico o contributo que este jesuita deu ao mundo. Obrigado por possibilitar este conhecimento.