domingo, fevereiro 05, 2017

"Morerías" de Elías Moro (“Ediciones Liliputienses”)

Uma “greguería” é um texto breve, semelhante a um aforismo, quase sempre uma única frase redigida numa única linha, que expressa, com engenho e originalidade, reflexões filosóficas, humorísticas, pragmáticas, poéticas, ou de qualquer outra índole. Atribui-se a sua criação ao génio literário de Ramón Gómez de la Serna.

Há pouco tempo, cruzei-me com prazer com estas “Morerías” de Elías Moro, um grande e digníssimo herdeiro da tradição do nosso mestre comum Gómez de la Serna. Esta obra (editada pela “Ediciones Liliputienses”) tem Lisboa na capa, Ramón também teve Portugal na sua obra, e Elías apresenta-nos pequenas delícias às quais o leitor atento não fica indiferente. Eu não fiquei. De tantas “morerías” que poderia ter traduzido, as que aqui vos deixo foram de imediato sublinhadas. Recomenda-se a leitura do original, acessível ao leitor português cuja tradição literária portuguesa também conheceu um "Gómez de la Serna luso", o sempre polémico António Ferro.

Eis algumas “morerías” do amigo Elías:

Os calos nas mãos são o sofrimento feito carne.

Os ramos da árvore, nus e indefesos contra o frio, são como um ideograma chinês a falar-nos do verão que perdemos.

A gabardina é um guarda-chuva cujas varetas são os nossos ossos.

O cisne, narciso tenaz, interroga-se continuamente se outrora fora patinho feio.

O leão há tempo que deveria de ter ido ao cabeleireiro.

Os peixes, às vezes, sonham com toalhas.

Na cabeça dos carecas, as orelhas adquirem de imediato uma importância que antes não tinham.

O escorpião traz um apóstrofo letal ao final da cauda.

O ataúde é um móvel do qual não desfrutamos.

O helicóptero é uma libélula que se transformou num monstro.

Os forenses nunca discutem com os seus pacientes.

O pedalar da infância dura-nos toda a vida.

Como pacíficos ursos de tecido, os casacos e pulloveres, os cachecóis e as luvas, hibernam durante o verão.

O pião é o mais bailarino de todos os brinquedos. Até se espaldeirar.

O nariz é o nosso radar portátil de aromas e odores.

O rábano envergonha-se do seu destino de hortaliça; a isso se deve o seu exagerado rubor.

Testamento: cruel vingança do morto contra parentes indesejáveis.

O parafuso sem a porca não é mais do que um solteirão de ferro destinado a enferrujar em solidão.

Fotografia: recordação do esquecimento que será.

O ciclista é o escravo a rodar do equilíbrio em movimento.

Na época dos melões, os agricultores jogam rugby com a colheita.

O novelo, entediado no cesto da costura, sente saudades do gatinho brincalhão.

As gotas de suor gostam de suicidar-se desde a ponta do nariz.

O ouriço zangou-se com todos os pentes.

Azinheira: medusa imóvel do montado.

Os sobreiros são todo o campo que verão, até os cortarem, as árvores da cidade.

A preguiça é uma das formas mais confortáveis de rebeldia.

O maior desejo do dandi é morrer na moda.

O giz arranha o quadro para arrancar-lhe os seus segredos.

Uma carícia imprevista é como música na pele.

A toupeira conhece melhor do que ninguém os diálogos secretos dos mortos. E, discreta como é, leva-os consigo para a tumba.

O jornal ri-se de nós todos os dias com as mentiras que nos conta.

O espantalho está desejando que lhe demos um abraço.

As bailarinas das caixas de música sentem-se um pouco como os burros de nora.

O buraco da fechadura multiplica a beleza do proibido.

A cicatriz é a memória da ferida.

A máquina de lavar roupa gosta de comer uma meia de vez em quando.

O café é uma infusão vestida de luto.

Um solteiro de férias dá sempre um bocado de pena.

A bússola está apaixonada pelo Norte.

Enquanto nos barbeia, o barbeiro tem a nossa vida nas suas mãos.

O tradutor é um contrabandista amável de linguagens e idiomas.

Ao malmequer nunca se lhe pergunta se bem quer ou mal quer alguém.

A memória é a arqueologia dos próprios sentimentos.

Poeta: tradutor do silêncio.

(Estas “morerías” foram traduzidas para português por Luis Leal)

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