Um dos lugares-comuns sobre a Suíça é que é um país de evasões. Isso é indubitável, mas nem todas as evasões têm porque ser fiscais. Com tanta informação hoje em dia, o mundo parece-nos mais fácil de compreender, mais acessível à mobilidade física e intelectual do ser humano, porém, a meu juízo, muitíssimo mais complexo e com novos estereótipos a nascerem desse turbilhão informativo. Talvez o interesse e a curiosidade sejam a melhor maneira de combater ideias preconcebidas, além de nos ajudar a entender o porquê de existirem estes lugares-comuns.
A noção de Suíça chegou à minha geografia montada num Toyota Celica, estacionado com frequência ao fundo da minha rua, uma matricula emigrante que me apresentou este país, esta comunidade helvética, simbolizada por uma cruz. Mais tarde, o escasso conhecimento somado foi graças a um herói televisivo, de ténis e blusão de cabedal com chumaços, cuja arma de destruição massiva - tão pouco típica dos músculos hipertrofiados da época - era a funcionalidade multiusos dum canivete suíço. Esta série de domingo à tarde, que recolhia Portugal às suas casas, subliminarmente, passou-me a ideia de a Suíça ser um país funcional e pragmático, sem sequer imaginar ser este um país exemplar para a engenharia e as mega infraestruturas. Hoje já entendo o porquê do Celica suíço do bairro. Devia ser pela necessidade de esticá-lo nas más estradas portuguesas. Experimentem fazê-lo nas belíssimas autoestradas suíças e receberão, de imediato, um simpático postalito em casa por parte das autoridades competentes!
Apesar dos ecos pop dos 80’s, foi a amizade, como também a concorrência de várias companhias a operarem Lisboa-Zurique, com vários voos diários, que me levou a este país.
Tínhamos pensado usar os transportes públicos, mas o conselho autóctone avisou-nos ser mais em conta o aluguer de carro e não nos arrependemos. Quatro dias para pouco servem, mas, se temos alguma mobilidade, conduzir pelos Alpes suíços é uma experiência única, ainda por cima se S. Pedro decide brindar-te com um tempo invernal radioso.
Recém-aterrados, o pequeno carro alugado via net que nos esperava foi simpaticamente substituído - sem alteração do preço contratado! - por uma gama mais alta, graças à atenção da amável funcionária ao ver-me chegar com a família completa. O susto das mudanças automáticas foi logo substituído pela comodidade suave da condução contemplativa desta região.
Ir à Suíça, em tão pouco tempo - sempre melhor que tempo nenhum - deve ser uma experiência para degustar ao ritmo de cada um, mas, se me permitem a sugestão, preferencialmente de maneira lenta e intensa, como o chocolate deste país.
Longe de ser guloso, aprendi a desfrutar desse derreter lento a lambuçar-me de endorfinas. Porém, como em todos os momentos em que há fartura, não sou pessoa de me saciar à bruta. Assim foi na fábrica e museu do chocolate Frey que visitámos em Suhr. Recomenda-se a experiência e degustação das fontes de chocolate, com destaque para a mesa rolante que, em vez de sushi, nos serve todo o tipo de derivados do cacau!
Ao final da tarde, início da noite, Zurique esperava-nos no mercado de Natal, na zona de Stadelhofen, com “Glühwein” (vinho quente) para aquecer as mãos e ruborizar a face, mesmo em frente a uma elegante Ópera iluminada a condizer. Olhava para os olhos grandes, mas pequenos de experiência, dos meus filhos e via como todo o ambiente da cidade os fascinava. O facto de terem visto um velho São Nicolau de Harley Davidson, talvez ainda os tenha deixado mais despertos para a época natalícia já em alta.
Os reflexos da iluminação cosmopolita de Zurique no rio Limmat ofuscam as diferenciações sociais feitas por esta cidade dentro do seu próprio burgo. Achei piada à zona de Kusnacht, onde mora a rainha do rock, Tina Turner, mas também à sua congénere Wipkingen, dedicada à realeza dos que trabalham sem tanto glamour.
Queria muito visitar o Cabaret Voltaire, esse mítico clube artístico no coração da cidade, no qual os dadaístas de Hugo Ball se reuniram para a posteridade. Omitir a minha decepção não seria honesto da minha parte. Fiquei com o busto do autor de Cândido na memória do telemóvel e com a reflexão no bloco de notas de que a nossa Brasileira e o modernismo português deveriam ter melhor marketing ao nível da história da arte mundial.
À raiz desta divagação, no dia seguinte, sem nos apercebermos, rumámos a Flumserberg, aos Alpes, na região também conhecida por Heidiland. Depois de tantos anos, foi necessário ir à Suíça para saber que a Heidi, esses desenhos animados da nossa infância sobre a vida duma menina órfã a viver com o avô, é, na realidade, uma adaptação de literatura infantil do final do século XIX da autoria de Johanna Spyri. E eu que pensava que era uma invenção ocidental do Hayao Miyazaki…
Percorremos cada quilómetro, esperamos que à velocidade permitida (de momento ainda não chegou nenhum postal de boas festas da policia suíça), com um prazer igualmente infantil. Na estação de ski de Flumserberg vimos como os desportos de inverno e de montanha são importantes para o ócio dum povo acostumado ao frio sem jamais renunciar ao ar livre. Enquanto as crianças brincavam com a pouca neve do dia, convertida num mini-boneco de neve com uma cenoura no nariz, podemos provar uma tradição quente-fria alemã chamada “Kaiserschmarrn” numa esplanada alpina e solarenga, tal qual como em Portugal, as crianças brincam na areia e os pais comem uma caracolada à beira-mar. Muda a altitude, a paisagem, a temperatura e, consequentemente, a indumentária, mas o sol é o mesmo para todos.
De volta a Zurique, na conhecida zona de Uster para tantos portugueses, mais actividades típicas da quadra. Um desfile de Pais Natais generosos para a criançada, distribuindo saquinhos de amendoins e tangerinas, um contraste interessante de energia de alcagoita com a vitamina C do cítrico, quem sabe para combater as gripes sazonais.
A noite e duas crianças ainda muito pequenas, não permitiram que desfrutássemos do “Käsefondue” (fondue de queijo) ao ar livre como manda a tradição helvética. Fizemo-lo no calor do lar anfitrião acompanhado por pão alentejano, fiel e resistente amigo por esse mundo fora desde a época dos Descobrimentos. Se existiu saudade gastronómica da nossa terra, foi a nível microscópico, de análises de sangue, com uns nostálgicos, e queixosos, colesterol e triglicéridos.
Há serões que duram para sempre. Os que passámos na Suíça recordar-me-ão boas novas, um cão meigo a brincar cuidoso com crianças, os vizinhos do lado a decorarem um pinheiro comunitário de Natal e as queixas de que passear na Suíça é um atentado à carteira do comum mortal. Sem eufemismos: sem amigos por lá, ser turista na Suíça fica muito caro!
Não me podia ir embora sem passar pelo “Swiss Knife Valley”, um vale sem imitações chinesas, tal qual é impossível imitar a qualidade das míticas navalhas com as quais, como já antes mencionei, Angus Macgyver salvava o mundo! Aqui não fiquei defraudado. Não ir ao berço do meu objeto favorito, estando ali em pessoa, seguramente acarretaria remorsos que fraudes. O museu não estava aberto ao público por remodelações, mas a simpatia da lusofonia, personificada por uma funcionária brasileira, da Baía, levou-nos a uma visita rápida onde vislumbrei o primeiro canivete de 1891.
De volta ao aeroporto, já ao final da tarde, apercebi-me da escassez de apontamentos para este compromisso que tenho com a minha estimada “Mais Alentejo”. Não os necessitava e não me evadiria à confiança do seu director. Os meus sentidos encarregaram-se de anotar tudo.
Não sei se voltarei à Suíça, do mesmo modo que não sei se voltarei a outros sítios onde gostaria de voltar. É-me indiferente. Tivemos uma curta oportunidade de ir. Eis a crónica duma rápida, mas lenta, viagem.
Nota: Esta crónica de viagem foi intitulada originalmente "Evasão Invernal" por o autor, sendo intitulada posteriormente "Viagem à terra dos Canivetes" por decisão editorial.
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