Há dias estava a ouvir uma
conversa sobre línguas mais importantes que outras. No mundo global impõe-se
esta verdade devido ao imperialismo duma língua franca e de línguas úteis vinculadas
à economia, porém no meu mundo, devoto da sustentabilidade, crer no absolutismo
dessa conversação, ainda por cima, como era o caso, para denegrir um idioma, e os
povos que o falam, é algo impossível.
Com os anos, tenho adquirido a
tendência a não gastar o meu latim, não por submissão, sim por opção. Identifico
facilmente com quem posso dar dois dedos de conversa sem querermos o braço um
do outro. Podia ter quebrado o meu silêncio e tentar argumentar que todas as
línguas, tal como as pessoas, são importantes, que falar de hierarquias nos fica
mal como linguistas que presumimos ser. Podia até salientar o quão fascinantes
são os provérbios e as expressões idiomáticas de cada língua, de como, entre
morais e ausências delas, se misturam no dia-a-dia criando autênticas pérolas
de sabedoria popular, mas preferi ir encher chouriços para outras bandas a
tentar ensinar línguas a burros velhos cheios de certezas que me dão medo.
Chouriços em mãos nessa minha
inutilidade intelectual, lembrei-me de como ambas as línguas, entre as quais
vou vivendo, recorrem constantemente ao seu património de enchidos. O português
“enche chouriços” ao não fazer nada útil ou com recompensa imediata (tem de
esperar pelo efeito fumeiro) e o espanhol recorre ao “chorizo” para o corrupto,
o ladrão do pão nosso de cada dia, geralmente um sem-vergonha de colarinho
branco. Quem prestou atenção às manifestações anticorrupção em Espanha,
lembrar-se-á duns cartazes com a frase proverbial “No hay pan para tanto
chorizo”. Porém, lembrei-me duma “greguería” que enunciava “todos los chorizos
se ahorcan”. Posso agora ter baralhado o amável leitor e não quero que ande
para aí às aranhas. O que é então uma “greguería”?
Na tradição literária espanhola,
uma “greguería” é um texto breve, semelhante a um aforismo, quase sempre uma
única frase, redigida numa única linha, que expressa, com engenho e
originalidade, reflexões filosóficas, humorísticas, pragmáticas, poéticas, ou
de qualquer outra índole. Atribui-se a sua criação ao génio literário de Ramón
Goméz de la Serna, ou simplesmente Ramón, como ficou conhecido em toda a Europa
e América do Sul nos anos 20 e 30. Para que o meu caríssimo leitor tenha uma
ideia do que se trata, tomei a liberdade de traduzir algumas do genial Ramón: “O
relógio não existe nas horas felizes”; “O epitáfio é o último cartão de visita
que faz o homem”; “Quando a mulher pede salada de fruta para dois, aperfeiçoa o
pecado original”; “Nervosismo de cidade: não poder abrir o saquinho de açúcar
para o café”; “O aparelho mais sábio do mundo é o autoclismo para a retrete,
pois com a sua corrente à mão todos somos uns Moisés milagrosos” ou “Não ter
morrido não é a única coisa que distingue os vivos dos mortos”.
Lili Caneças (bem viva e plastificada)
roçou o género com o seu célebre “estar vivo é o contrário de estar morto”. Faltou-lhe
a fórmula ramoniana de “metáfora+humor”, no entanto, esta apelidada “tia”, tem
em comum com o autor a linha de Estoril-Cascais, onde este construiu uma
moradia e passou largas temporadas até não voltar, para sempre, em 1928.
Ramón assumiu a descoberta que
fora para si Portugal e incitou os seus compatriotas a visitá-lo urgentemente.
Esse é o fascínio dum país, duma língua, duma cultura, esses génios escondidos
em lâmpadas singelas cuja arrogância e chauvinismo não permite conhecer. Génios como um tendeiro que conheci, de
megafone, a fazer publicidade à sua banca: «Venham ver senhores e senhoras!
Aqui falam-se línguas! É inglês, é francês, é espanhol, é português e até
língua de porco!».
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