Há um par de anos, numa conferência, alguém me comentou que eu tinha duas vozes: a portuguesa e a espanhola. Em tom de brincadeira, disse-me que soa mais sexy em espanhol. Imaginei logo o caricato que seria dobrar filmes marotos ou fazer a locução de noites longas, dedicadas aos amantes, na rádio.
O certo é que nunca me apercebi da minha voz oscilar livremente entre uma fronteira de vogais e consoantes articulada conforme o país que piso ou o interlocutor que tenho à frente. O fascínio pela voz, desde o seu tom identitário à emancipação da linguagem e, naturalmente, do pensamento, esse, vem de antes, ao frequentar um curso sobre a sua colocação e como cuidar as cordas vocais, tantas vezes enleadas no stress do dia-a-dia.
Quanto ao volume, diz-se que a voz espanhola tende a ser mais alta que a portuguesa. Remeto o caríssimo leitor para o audiodosímetro e, com toda a confiança, disponibilizo os meus filhos para o testar. O substrato nas raízes é luso, mas o tronco engrossa em solo extremeño com algum chinfrim.
Enfim, seja em que língua for, aguda ou grave, rouca ou sensual, é ponto assente que a voz há que cuidá-la. Sem saúde vocal, o mais íntimo dos nossos pulmões não produz fluxos de ar eficazes para falar, cantar, rir, gritar, chorar...
A sociedade também tem as suas pregas vogais e os seus próprios articuladores, capazes tanto de eufonia como de cacofonia. Igual que o indivíduo, a voz do colectivo pode depressa mudar de tom para nos sugerir emoções de felicidade, surpresa, estupefação, rejeição, carência ou raiva.
Vozes, há bem pouco apenas murmúrios, alçaram-se no regime constitucional e democrático de Espanha. Quem deu o mote, curiosamente, foi um sociólogo basco, Santiago Abascal, saído do PP há cinco anos para fundar o partido conservador Vox.
Nas primeiras eleições, o Vox (defensor de fronteiras fechadas, muros em Ceuta e Melilla, deportações de imigrantes ilegais ou legais, condenados por delitos, e do encerramento de mesquitas “financiadas pelo fundamentalismo”) não chegou sequer aos 0,3%. Porém, no passado dia 2 de Dezembro, este partido, que nega ser “fascista, de extrema-direita, homofóbico, machista, racista ou xenófobo”, definindo-se antes como antipartidocracia, retirou à esquerda a maioria mantida na Andaluzia desde 1982.
Num passado recente, a voz de Abascal, sempre de Smith&Wesson, já imitara a de Trump com tornar a Espanha grande outra vez. E, há poucos meses, “armado cavaleiro” (rejeita o espírito peregrino de Santiago em prol do de “mata-mouros”) num vídeo com outros dirigentes do Vox, cavalga à maneira da reconquista e expulsão dos muçulmanos da Península em 1492. A eloquência elegeu 12 deputados no parlamento regional andaluz.
Por cá, a voz de Mário Machado, líder do movimento de extrema-direita Nova Ordem Social (e também condenado pelo envolvimento na morte de Alcindo Monteiro, assassinado em 1995), viu-se no Você na TV!. A conversa sobre se precisamos de um novo Salazar? gerou polémica, tal qual o plágio risível dos coletes amarelos tugas. Por enquanto, assento só na TV, porventura propulsor de assento parlamentar.
O interesse em ouvir estas vozes, remete-me unicamente para entender o porquê de cada vez se pronunciarem mais alto. Vozes de burro não chegam ao céu é pura arrogância proverbial. Por mais que o seu timbre nos desagrade, todas devem ser ouvidas. Se tal não acontecer, a afonia de ideias, coligada com a corrupção e constantes atraiçoamentos da moral e da ética, envenena a democracia.
António Barreto, num interessante ensaio, culpabiliza os políticos e as políticas. Discordo em aceitar paternalismos. Exerço o meu direito de ser sensível à voz que quero. Sim, concordo, ao enunciar ser a democracia que parece culpada, quando, coitada, pouco mais é do que um conjunto de regras de convívio e respeito.
Maestros predestinados e batutas inflexíveis acabam com a polifonia do coro. Eduquemos e humanizemos as vozes, acredito, ciente disso continuar a ser um nódulo na garganta de muita gente.
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Em vez de uma voz, um olhar... |