A primeira vez que viajou até ao
país vizinho a fronteira estava povoada por alfândegas e guardas-fiscais. Nem sequer
imaginava um dia a poder cruzar livremente, no velho Clio, de mala cheia e, no
banco de trás, para caber, uma bicicleta desmontada e não ter de abrir o
porta-bagagens para declarar os escassos pertences.
Atrás deixava a geografia do
Alentejo, no fundo desconhecida, e, na fronteira dos Galegos, vislumbrou pela
primeira vez Puerto Roque, onde escalaria um 5 de Outubro e cairia numa
cicatriz, essa dolorosa lembrança de um tornozelo partido que prefere sentir
com orgulho republicano.
Adentrado em território espanhol, apercebeu-se dum recente incêndio, visível no cinzento rochoso carente do verde flora de antanho. Não sabia o que pensar. Esperava que devido ao facto de, entre 1644 e 1668, esta raia ter sido portuguesa, a mesma não tivesse contraído o mal crónico dos fogos florestais.
No semáforo das Huertas, experimentou
o prazer de cumprimentar o banco de homens sentados à porta do bar. Seguiu em
frente, pela N521, mais alguns quilómetros até à entrada do “pueblo”.
A noção de “pueblo” em português
pode traduzir-se numa localidade mais pequena que a cidade, abarcando a
dimensão da vila e da aldeia, e Valencia de Alcántara tinha-lhe passado de
raspão no mapa das estradas a caminho de Cáceres, contudo ali estava, a tirar
mochila e sacos do carro, para começar uma nova vida laboral na escola
secundária da terra.
À semelhança da última capital de
distrito portuguesa por onde passara na viagem, não se via muita gente nesse
primeiro domingo de Setembro. Estacionado no parque das “Ranas”, subiu com a
tralha para o apartamento alugado ao Sr. Maneli (um bom amigo a quem deve uma
crónica) e terminou a tarde absorta na varanda virada a pôr-do-sol.
Saiu de casa. O recolhimento da
tarde fora substituído pelo alarido dum serão de gente a falar, a rir, a comer,
a tomar a sua “cañita” ao balcão de um bar ou numa das muitas esplanadas. As
crianças corriam pela praça e brincavam no parque com uma alegria despreocupada
à qual não estava acostumado no outro lado da fronteira.
Sentia a mudança. O sotaque
anunciava-lhe a condição de estrangeiro cuja pinta confundia a procedência de
jovem duma cidade do interior português. Caminhou só pelo Bairro Gótico, subiu
ao castelo e parou no Rocamador, onde se celebrara a boda régia de Isabel de
Aragão e D. Manuel de Portugal. Aí lembrou-se das vinhetas duma agradável BD,
lida há pouco, sobre “Histórias da Raia”.
Regressou tarde, ainda
acompanhado pelo movimento da rua. Queria descansar o suficiente para se
levantar cedo e apresentar-se com boa cara na escola. “Hola, soy Luis, el nuevo
profesor de portugués”.
Não foi preciso lembrar-se da
canção do Sérgio, era o primeiro dia do resto da sua vida, dum contrabando de afectos
que o levaria à Fontañera, a El Pino, à Aceña, ao Jiniebro, a toda essa “campiña”
que, cada dia 15 de Maio, celebra S. Isidro, o Lavrador, vestida a rigor e com
carroça a condizer.
Não são muitos os portugueses a
adoptarem um “pueblo”. Em Portugal não se ouve tanto dizer ao fim-de-semana,
num feriado feito ponte (vá lá, talvez nas férias grandes, mais a norte do
país), “vou para a minha aldeia, vila…”. Seria pouco provável uma campanha de
marketing, como a que fez aqui ao lado uma famosa bebida isotónica, ao
propor-se pôr em contacto “pueblos” a necessitarem de gente e gente a
necessitar de “pueblos”. Em Espanha, o amor e regresso ao “pueblo” perpassa gerações
e não se resume ao berço, vive-se.
Hoje já não está em Valencia de
Alcántara. Sente-se afortunado por aquele “pueblo” o ter deixado ser o seu
durante sete anos. Agradece-lhe por, ao ser de cidade, poder sempre dizer “Valencia
es mi pueblo”.
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