sábado, outubro 22, 2016

O meu “pueblo” Valencia de Alcántara (in "Mais Alentejo"nº135)

A primeira vez que viajou até ao país vizinho a fronteira estava povoada por alfândegas e guardas-fiscais. Nem sequer imaginava um dia a poder cruzar livremente, no velho Clio, de mala cheia e, no banco de trás, para caber, uma bicicleta desmontada e não ter de abrir o porta-bagagens para declarar os escassos pertences.

Atrás deixava a geografia do Alentejo, no fundo desconhecida, e, na fronteira dos Galegos, vislumbrou pela primeira vez Puerto Roque, onde escalaria um 5 de Outubro e cairia numa cicatriz, essa dolorosa lembrança de um tornozelo partido que prefere sentir com orgulho republicano.

Adentrado em território espanhol, apercebeu-se dum recente incêndio, visível no cinzento rochoso carente do verde flora de antanho. Não sabia o que pensar. Esperava que devido ao facto de, entre 1644 e 1668, esta raia ter sido portuguesa, a mesma não tivesse contraído o mal crónico dos fogos florestais.

No semáforo das Huertas, experimentou o prazer de cumprimentar o banco de homens sentados à porta do bar. Seguiu em frente, pela N521, mais alguns quilómetros até à entrada do “pueblo”.

A noção de “pueblo” em português pode traduzir-se numa localidade mais pequena que a cidade, abarcando a dimensão da vila e da aldeia, e Valencia de Alcántara tinha-lhe passado de raspão no mapa das estradas a caminho de Cáceres, contudo ali estava, a tirar mochila e sacos do carro, para começar uma nova vida laboral na escola secundária da terra.

À semelhança da última capital de distrito portuguesa por onde passara na viagem, não se via muita gente nesse primeiro domingo de Setembro. Estacionado no parque das “Ranas”, subiu com a tralha para o apartamento alugado ao Sr. Maneli (um bom amigo a quem deve uma crónica) e terminou a tarde absorta na varanda virada a pôr-do-sol.

Saiu de casa. O recolhimento da tarde fora substituído pelo alarido dum serão de gente a falar, a rir, a comer, a tomar a sua “cañita” ao balcão de um bar ou numa das muitas esplanadas. As crianças corriam pela praça e brincavam no parque com uma alegria despreocupada à qual não estava acostumado no outro lado da fronteira.

Sentia a mudança. O sotaque anunciava-lhe a condição de estrangeiro cuja pinta confundia a procedência de jovem duma cidade do interior português. Caminhou só pelo Bairro Gótico, subiu ao castelo e parou no Rocamador, onde se celebrara a boda régia de Isabel de Aragão e D. Manuel de Portugal. Aí lembrou-se das vinhetas duma agradável BD, lida há pouco, sobre “Histórias da Raia”.

Regressou tarde, ainda acompanhado pelo movimento da rua. Queria descansar o suficiente para se levantar cedo e apresentar-se com boa cara na escola. “Hola, soy Luis, el nuevo profesor de portugués”.

Não foi preciso lembrar-se da canção do Sérgio, era o primeiro dia do resto da sua vida, dum contrabando de afectos que o levaria à Fontañera, a El Pino, à Aceña, ao Jiniebro, a toda essa “campiña” que, cada dia 15 de Maio, celebra S. Isidro, o Lavrador, vestida a rigor e com carroça a condizer.

Não são muitos os portugueses a adoptarem um “pueblo”. Em Portugal não se ouve tanto dizer ao fim-de-semana, num feriado feito ponte (vá lá, talvez nas férias grandes, mais a norte do país), “vou para a minha aldeia, vila…”. Seria pouco provável uma campanha de marketing, como a que fez aqui ao lado uma famosa bebida isotónica, ao propor-se pôr em contacto “pueblos” a necessitarem de gente e gente a necessitar de “pueblos”. Em Espanha, o amor e regresso ao “pueblo” perpassa gerações e não se resume ao berço, vive-se.

Hoje já não está em Valencia de Alcántara. Sente-se afortunado por aquele “pueblo” o ter deixado ser o seu durante sete anos. Agradece-lhe por, ao ser de cidade, poder sempre dizer “Valencia es mi pueblo”.

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