Viajar no tempo e poder fazê-lo
num utilitário (sem ser um DeLorean), de bicicleta e algumas vezes a pé, é-me intimamente
circunstancial. Do passado ao futuro, passo a fronteira e sinto o tempo como um
mecanismo de areia numa ampulheta, mais ou menos apertada, consciente da
existência derradeira dum último grão de areia.
Esta é a flexibilidade duma
geografia com dois fusos horários. Greenwich (GMT) e Greenwich mais um (GMT+1).
Viaja-se no tempo, o roaming altera o relógio do telemóvel e, como já me
aconteceu, chega-se uma hora antes ou depois ao local combinado.
Percorrer o tempo assim, alheio
às máquinas do tempo do H.G. Wells e do Doc Brown, é o dia-a-dia de muita gente
raiana e, até mesmo, de cidadãos dentro dos próprios países, basta pensarmos
nos Estados Unidos ou no nosso irmão tropical, Brasil. O tempo transfronteiriço
é propicio à viagem dentro de nós mesmos, à reflexão de porquê saímos de Badajoz
às 8h e chegamos a Évora – através dum portal temporal de 5’90€ - às 8 horas.
Deslocamo-nos num limbo, numa segunda oportunidade de aproveitar o tempo.
Ir de Espanha a Portugal
oferece-te isso mesmo, tempo. Em 1942, Franco preteriu da pontualidade
britânica a favor dum conveniente Eixo. Graças a simpatias, mais do que
assumidas, do Caudilho, os anos foram passando e a Península Ibérica celebra o
ano novo duas vezes. Primeiro come as doze uvas ao som de campanadas em Espanha
e, mal passa a fronteira, sobe a uma cadeira, come mais doze uvas já em passas.
No meio de tanta correria, desejos e resoluções de ano novo, poder-vos-ia dizer
que a maioria estreia roupa interior (em Portugal impera o azul, talvez pela
vocação marítima, e entre os “nuestros hermanos” o vermelho “pasión”!), no
entanto não sou pessoa de me andar a meter na vida dos outros, muito menos em
lingerie alheia!
É possível que o ano, que agora
findou, seja o último ano em que roubamos umas migalhas da riqueza de Cronos.
Debate-se o horário espanhol, fala-se de sestas de identidade cultural (apesar
de cada vez menos as dormirem) e de costumes tão típicos (e tão pouco europeus,
como alguns gostam de mencionar), questionando-se as refeições tardias e os “aperitivos”
sociáveis.
Comecei os primeiros dias do ano
novo com uma tradução espontânea dum excerto do livro “fracasar mejor
(fragmentos, interrogantes, notas, protopoemas y reflexiones)” de Jorge
Riechmann: «Deverias seguir o exemplo de “shunk tokecha” (o lobo). Ainda que o
surpreendas e corra para salvar a sua vida, parar-se-á para dirigir-te outro
olhar antes de entrar no seu último refúgio. Assim deves também tu dirigir
outro olhar a tudo quanto vês.» O autor termina a sua reflexão incitando: «Historiador,
ativista, poeta: aprende a ver como o lobo nesse instante de libertação ou
condenação, de proximidade da morte ou do milagre, do supremo perigo».
Eu vejo que vivo dois fusos. Por
vezes ando confuso, mas não me confundo com o presente que este novo ano
trouxe. Um presente cheio de erros do passado, desconfiado, amuralhado em
ideologias, afogado no mediterrâneo, com tantos atentados à liberdade, à
igualdade, como também à inteligência, de preferência colectiva, em rede, para
ser bem controlada pelo sistema operativo.
Infelizmente, não me é possível
viajar no tempo, mais do que essa hora paga por tabela (e indexada à taxa de
inflação) à Brisa. Também aqui pela península, o lobo-ibérico, de olhar
articulado historicamente com o passado da sua espécie, é uma espécie ameaçada
de extinção.
Não sei como terminar esta
crónica e não quero imaginar como vai terminar este ano. Vou regressar aos
apontamentos, à nota inicial excluída: “o lobo dança sobre o tempo e na
fronteira do ser, olha tudo quanto vê antes de entrar no seu último refúgio”.
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