quinta-feira, maio 04, 2017

Cozinhas de hipócrisia...

Alimentar deve de ser das tarefas mais nobres que se podem ter para com outro ser vivo, ainda mais se, o que alimenta, tem um talento especial para deleitar os sentidos do outro para além da necessidade calórica. Conheço e conheci gente com este talento, o de cozinhar tão bem que essa característica se evidencia na minha percepção e reconhece a minha incapacidade de fazer o mesmo ao paladar. A minha avó era assim, a minha madrinha é assim, a Elsa é assim. Eu agradeço, desfruto do estômago, a cabeça analisa o porquê e o coração é grato. 
Mas, aqui por esta terra de «Chefs» de estrelas de empresas pneumáticos, fala-se do abuso justificado que se faz dos estagiários ou aprendizes de cozinheiros de alta cozinha, com todo o glamour que isso implica. Na minha profissão fui estagiário, aprendi muito e fui explorado, mas tive a sorte de auferir um rendimento ao final do mês, o que ajudou a equilibrar a aprendizagem e a exploração. Creio que se assim não fosse, e tendo em conta a sensação de não ter nada a perder que tinha então, haveria uma revolução. O que aprendia não compensava a exploração não remunerada e, aqui nos meus pensamentos hipotéticos, até teria enfrentado fisicamente o que me explorava. Ainda bem que tal não aconteceu. Como o meu avô dizia, perderia a razão para compensar o gosto dos punhos. Tinha razão, mas, ao reconhecer que tinha vontade de lhe ir aos cornos, sinto que até faz de mim melhor pessoa.
Depois disso a experiência encarregou-se de me pôr a formar gente. Já lá vão uns quantos, espero que não tenham vontade de ir-me aos cornos, mas nunca se sabe. Apenas tenho a certeza de ter sido sempre honesto na experiência partilhada, o que farão com ela já é sua opção.
Tudo isto para não me esquecer de pôr neste diário o quanto desprezo a atitude destes «chefs» aos gritos e a partirem loiça egocêntrica pela cozinha. Podem adjectivar os pratos como os escritores fazem aos textos, se calhar até são artistas, porreiro, mas não me venham com tangas que é assim que se entra no mundo da gastronomia dita sublime, desconstruida, molecular, na moda e para a moda, paga a peso de ouro e estupidez.
Não trocava as bifanas de Vendas Novas por uma iguaria 5 estrelas dum catalão com lista de espera. Primeiro porque não tenho dinheiro para lá ir comer e segundo porque prefiro más companhias, gente de trabalho, nada refinados e de paladar prosaico e guloso de mostarda como o meu.
Já um desses «chefs» se fosse aprender que à mesa a boa educação passa por ter comida para sobreviver e não para criticar, para aumentar audiências, como se fosse trinca para cão, mereceria esse título tão kaiserino de «chef». O problema é que somos nós quem põe a colher de pau na mão destes elitistas do design do paladar e deixamos que façam pouco da educação dos nossos sentidos, por vezes até admitimos ataques a legados gastronómicos familiares por acreditarmos num estatuto que nem sabemos como o ganhou. 
Estagiário estás aí para aprenderes a seres melhor que isso. Nem tudo é currículum... eu prefiro o assado de borrego da minha avó e ai de quem disser mal dele! Já o admiti, por vezes tenho vontade de escrever com os punhos...

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