Era o dia em que se ia ao
cemitério lavar campas e ver a minha avó Rita a chorar num ritmo compassado,
sentada num banco, dando beijos à foto sépia do meu avô Ventura. Esta imagem
não estaria completa sem o lenço de tecido com o qual limpava os resíduos chorosos
na fotografia vidrada para o efeito da defunção.
(Só vejo este tipo de fotografias
em cemitérios, quem sabe numa tentativa vã de imortalizar o que o papel não é
capaz de fazer ao nitrato de prata.)
Acompanhava o meu pai para hoje
odiar flores de plástico. Acho que ajudava a levar o pequeno banco desdobrável
de campismo, com o qual a minha avó acampava ao lado do túmulo do marido e,
depois, no dos seus pais. O regador e o balde não. De certeza que não. Não
tinha força para isso e não havia vida para regar.
(A minha memória é assim,
materialmente diferente do poliuretano das flores deste dia, murcha como as
flores verdadeiras.)
Sabia lá eu o que era o "Dia
de Todos os Santos". Nem hoje percebo o que é isso de santidade. Entendo dedicar-se um dia aos finados, essa outra forma de nos referirmos
aos que morreram, aos que foram vítimas do fim.
Quando a minha avó Rita foi
vítima do fim, e já não precisou do banquinho de campismo lamurioso pois a
terra levantou-se para levá-la para a campa matrimonial, descobri que, junto
com o meu pai e a minha irmã, sou proprietário dessa tumba. Confesso o “mea
culpa”, pois o meu primeiro pensamento verbalizado foi do mais mundano e
egoísta para esse bem imobiliário herdado: tenho de pagar IMI?
(Parece que não há impostos
directos para a última residência, o estado ainda não se lembrou de exigir a
declaração de campas e jazigos no IRS.)
Depois disso, já muitas coisas me
passaram pela cabeça e, uma delas, prende-se com os motivos que levarão uma
pessoa a querer possuir o pedaço de terra onde se fundirá com ela. Creio
entender o investimento feito pelos meus avós, a sua noção de propriedade, de
património a deixar de herança aos que cá deixavam.
Não seria pela carga fiscal,
agradeço a intenção dos meus antepassados, sei que, quando chegar o fim, a
algum buraco iremos parar, algo nos vai incinerar, ou, no esquecimento do mar,
o que antes foi corpo decompor-se-á. Porém, abdico desse investimento, desse bem
material que, como tantos outros em vida, é supérfluo, não me faz falta e não o
desejo ostentar.
As gerações globalizadas, celebram
o Halloween com doces, rebuçados e travessuras. Máscaras e divertimentos macabros
a mês e meio antes de se celebrar no calendário o nascimento. Para quê celebrar
o fim? Para quê celebrar os finados? Para quê mostrar, ao mundo global, que num
passado recente se recordavam as mortes e que para a morte comprávamos a última
morada?
Ninguém está preparado para ser
vítima do fim, por mais que o fim esteja à frente dos olhos. Pensar no que
fica, no que se vai deixar para herdar, terá a mesma utilidade que a campa que
os meus avós nos deixaram. A terra por cá ficará. Eu fico com as suas boas
intenções, que, como o IRS, devo declarar em sua memória.
(Foto de autor desconhecido)
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