sexta-feira, novembro 24, 2017

Estações - Jordi Doce

Conhecia o seu trabalho como tradutor e ensaísta, mas pouco da sua poesia. Ontem tive o prazer de o ouvir a recitar o seu trabalho poético. Dobrei várias pontas das páginas do “cuadernillo nº152” da “Aula de Poesía Diez-Canedo”, como gosto de marcar no papel aquilo que me marca o pensamento, o sentir de um determinado momento. Jordi Doce é um grande tradutor do poeta que leva dentro. Já eu sou de um tal atrevimento que tive de me apropriar do seu poema “Estações”. Não sei se ele opina o mesmo, mas a tradução, a mim, sempre me arranca do silêncio.

Estações – Jordi Doce

1

Voltaste a atrasar-te,
mas a novidade
não é essa, atrasas-te sempre,
sempre o fizeste,
e a tensão que espreita enquanto pões
os pratos
ou mexes o refogado que nunca está no seu ponto
é outra coisa,
o pousio de um céu sem vontade
que cala o que viu,
o frio seco que chega ao osso
quando abres a porta e não é ninguém.

2

O medo,
é o medo outra vez, pensas, enquanto a luz
se torna mais forte
no pátio interior e a manhã
arranca sem certezas,
apenas a voz de uma menina
no apartamento do lado, um ruído
de portas e elevadores
para gente convicta do seu ofício,
nomes redondos,
e o leite que há pouco puseste no fogão
a queimar-se.

3

As coisas que te dizem
são muito sensatas, mas
não te interessam,
estão muito longe de ajudar-te
e só
por respeito te páras a ouvi-las,
sem impaciência,
enquanto atascas o pé em mal-entendidos
e o silêncio prospera
como um tumor na garganta, tens
razão, não tinha pensado nisso,
e o passo fiel, o olho aquoso.

4

O que sonhas é uma mancha
nas horas, um coalho negro
que se expande às escondidas
e põe os seus tentáculos aqui,
onde o sangue
é fraco, onde o ar se torna mais escasso
e fere,
e o teu nome não está em nenhuma boca,
e todo o dia
vais e vens entre duas águas
sobre o fiel de ti mesma,
a tentar não te afogares.

5

Desertos dos dias, demónios das minhas noites,
digam-me
o que foi da matéria que foi vida,
em que acabaram
o sangue e o seu latido, a água
tensa do desejo?
Já só restam perguntas,
tão só uma insistência muda,
como o dormir,
e a menina que o tempo não dissolveu
a brincar
com a noite, com os demónios, consigo mesma.  

(trad. Luis Leal)

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